O processo de construção da imagem de heróis e vilões ao longo da história brasileira sempre é um assunto que suscita muitos debates, exigindo um grande esforço de análise em relação às perspectivas envoltas nessa edificação, principalmente por envolver juízos e concepções de contextos diferentes do nosso, dificultando a compreensão e apuração das reais intenções presentes nas fontes do passado.
Domingos Fernandes Calabar, tido por muitos como o primeiro traidor nascido em terras tupiniquins, se encaixa perfeitamente no quadro apresentado anteriormente. Revisitado por dezenas de historiadores, inicialmente foi estigmatizado como vilão, mais tarde, porém, coroado como herói dos holandeses e genial defensor da terra-mãe ao optar pelo desenvolvimento de sua região, ao contrário da “exiguidade portuguesa”.
O pano de fundo dessa peça intrigante é o projeto de ocupação holandesa à região do atual nordeste brasileiro no século XVII, didaticamente conhecido como “invasões holandesas”, quando o Brasil colônia era integrado à União Ibérica. Findado forçosamente o plano de controlar Salvador, na Bahia, os neerlandeses rumaram para Pernambuco em 1630.
Por lá, também encontraram grande resistência e defrontaram a figura de Calabar, então senhor de engenho que apoiava o lado dos resistentes. Mulato ou mameluco, controversa jamais solucionada, nosso “vilão/herói” auxiliava as chamadas “emboscadas” contra os invasores, principalmente devido ao seu grande conhecimento do território, dificultando as ações estrangeiras.
Porém, num contexto em que grandes latifundiários da cana passaram a apoiar as forças dos Países Baixos, Calabar ousou trilhar o mesmo caminho. Poderia ser por imaginar que, ao final, tudo seria perdido de qualquer forma. A intenção de ganhar uma grande recompensa por auxiliar os holandeses. Até mesmo entendê-los como grandes empreendedores, enxergando um futuro mais dourado sobre o domínio deles e não dos portugueses. Difícil ser exato. Mas, de fato, o cambio aconteceu em 22 de abril de 1632. A data, por sinal, se fez emblemática ao representar o oposto a 21 de abril, dia de um grande “herói nacional”, conhecido popularmente por Tiradentes.
Dali em diante, os invasores passaram a desenvolver uma série de conquistas até finalmente “sujeitar” boa parte do nordeste brasileiro ao seu controle. Calabar, porém, teve um fim muito próximo ao do alferes mineiro. Capturado, o primeiro “traidor do Brasil” foi condenado à morte e submetido ao garrote em 1635, honraria concedida, por exemplo, ao imperador inca Atahualpa. Posteriormente, foi esquartejado e suas partes foram expostas.
Apura-se, antes do então defensor passar para o lado holandês, que este teria exigido informações sobre como a população da região seria tratada após o triunfo dos invasores. Recebendo a garantia de que a relação seria pacífica, seduziu-se pela ideia de que os neerlandeses libertariam o povo, diferentemente dos portugueses que há tanto os escravizavam.
Mesmo após morte trágica, a verdade é que Domingos Fernandes Calabar continua alimentando controvérsias e permanece bem vívido, a postos para ser transformado a qualquer momento naquilo que lhe quiserem converter.