O conturbado momento político brasileiro ao mesmo tempo em que nos inquieta, principalmente em relação aos rumos que o país tomará, leva-nos também a importantes reflexões sobre a nossa sociedade e o seu modo de pensar.
Corrupção, mandos e desmandos, descasos e abusos nos âmbitos municipais, estaduais e federal, levantam questionamentos e um desejo de mudança por parte da população brasileira. Mas se é preciso mudar, qual direção tomar a partir de agora? A literatura pode nos ajudar nesse longo percurso a ser explorado.
Os romances de cunho realista, aqueles em que os escritores buscam energia de suas experiências ao longo da vida e, de diversas formas, representam as problemáticas das sociedades às quais pertencem, têm a possibilidade de nos tornar mais críticos, tirando-nos de nossa zona de conforto, levando-nos a questionar nossa comunidade repleta de distorções e desigualdades, independente do aparecimento de questões políticas em suas tramas.
A política em nosso território manifesta dia após dia velhos vícios que, em algumas situações, parecem travar o avanço das terras tupiniquins rumo à diminuição da desigualdade social e não apenas no aspecto da renda, mas em relação ao gênero, à raça; ao acesso à terra, à moradia, à cultura; a um melhor sistema educacional e de saúde.
Esses vícios nem sempre são revelados através da imprensa ou de forma oficial pelos “homens de poder”.
Entretanto, a ficção possibilita certa liberdade para revelar aquilo que permanece escondido e não se torna público. Além disso, lida em seus enredos com questões que dominam os debates em nossas sociedades, ou como pano de fundo ou delatadas em suas superfícies, impelindo-nos a ponderar sobre as mazelas sociais e até mesmo desenvolver uma autorreflexão mediante os episódios mais recentes no Brasil.
Segundo os dados do Banco Mundial em 2014, por meio do Coeficiente de Gini, usado para medir a desigualdade de distribuição de renda, mesmo com os significativos avanços nos últimos vinte anos, em uma escala em que obviamente nenhum país consegue atingir a igualdade total, o Brasil está na faixa de 0,5 a 0,55, considerando que a igualdade máxima é equivalente a zero e a desigualdade máxima é equivalente a um.
Logicamente, os índices nem sempre revelam a realidade e temos ainda uma incontável lista de medições como o IDH, IPH, entre tantos outros. Mas é possível deduzir que, independente dos números, por estarmos entre as dez maiores economias do mundo, teríamos condições de melhorar nossa conjuntura em diversos pontos.
Talvez, embora possa parecer uma utopia, para alcançar a transformação tão cobiçada, seja preciso que novas figuras emerjam dentro do atual quadro político. Nomes que pensem coletivamente e não apenas na preservação do poder de sua coligação, para além das fatigantes disputas entre os partidos de oposição e situação já tão conhecidos por nós. Mas o que sempre vemos é mais do mesmo.
Entretanto, o turning-point brasileiro, ou seja, nosso momento decisivo, passa exatamente por nós, cidadãos. Para além de simples protestos, é preciso clamar por uma profunda reforma política, por uma vasta modificação no sistema tributário e também previdenciário, por um aperfeiçoamento do código penal, na tentativa de garantir que os investimentos em educação, saúde, transporte, cultura, etc., cheguem a todos, sem exceção e primeiro aos que mais necessitem.
Especialmente nesse tópico a literatura nos auxilia ao apresentar uma infinidade de realidades e mundos que talvez jamais imaginássemos conhecer senão por ela. Por mais que nem sempre a ficção seja a tradução da “vívida realidade”, conseguem representar e simbolizar, no sentido em que reconstroem esse real, organizando-o e também o interpretando, tomando-lhe determinado sentido, viabilizando um sentimento de empatia, elemento tão pouco explorado nas discussões políticas.
Os acontecimentos políticos atuais propiciam a nós que talvez tenha chegado o momento de pensarmos efetivamente de forma coletiva e de colocar, quem sabe, nossas vontades mais mesquinhas abaixo das aspirações que culminarão em uma comunidade mais desenvolvida sem exceções. É a hora de entender que não estamos divididos em lados, mas somos somente um.
E não é preciso deixar nossa ideologia de lado. Ela é construída ao longo do tempo, pode ser modificada com o passar dos anos, mas reflete quem somos. No entanto, não adianta aspirar por transformação se o único motivo que nos leva a pensar isso é porque o partido A ou B, meu preferido, não está no poder e quero meus objetivos atendidos a qualquer custo e independente de outros.
Substituir nem sempre é transformar, mas se é para modificar que desta vez pensemos em nomes cujas propostas atendam nossa nação como um todo e não somente a grupos específicos. Ou então, iremos continuar reproduzindo um círculo vicioso e não chegaremos a nenhum lugar diferente desse que já nos encontramos.
Assim sendo, ainda que os romances, ficções, possam ter origens variadas quando levamos em consideração as concepções políticas e ideologias de cada escritor, essa “realidade parcialmente percebível” através dos enredos realistas pode despertar o desejo de mudança perante sociedades injustas, gerando indagações sobre as desigualdades sociais, miséria, princípios e valores que costumeiramente prevalecem sem questionamentos no decorrer dos anos.