Se os livros são para todos, como dizia Boris Spivacow, ao criar o Centro Editor de América Latina, então é melhor queimá-los. Assim pensava a ditadura militar argentina e seus capachos quando decidiram queimar toneladas e mais toneladas de livros editados pela CEAL.
O triste episódio do crime incendo-literário da Ferré aconteceu no ano de 1980, mais exatamente no dia 26 de junho, e foi o mais duro golpe já sofrido pela editora. Não que ocorrências iguais ou tão mais lamentáveis não tenham sucedido, como a série de bombardeios que a sede editorial recebeu ao longo dos anos ditatoriais ou o assassinato do funcionário Daniel Luaces, em 1974, pelos agentes do governo.
Mas incendiar cerca de um milhão e meio de exemplares foi um cruel ferimento a todos os ideais literários daqueles que buscavam uma argentina democrática através também da literatura.
Um terreno baldio na rua Ferré, no Bairro de Sarandí em Buenos Aires foi o escolhido para receber tamanho ato de terror contra qualquer tentativa de questionamento e liberdade que as obras pudessem suscitar em seus leitores. Boris foi obrigado a assistir.
Utilizando-se da lei de Segurança Nacional LEY Nº 20.840, ainda em 1978, que impunha penalidades para todas as atividades consideradas subversivas, em suas diversas formas de manifestações, o juiz federal Gustavo de la Serna determinou que os depósitos da CEAL fossem aprisionados, juntamente com 14 funcionários. Da totalidade dos livros, 30% foram considerados perturbadores da ordem social, de acordo com o informe de inteligência:
“Material questionável: No mesmo, podemos constatar a existência de livros tais como Sociedad e Ideología, de Marx y Nietszche, Existencialismo, marxismo y empirismo lógico, El imperialismo, defensa y crítica, Las reformas económicas de la Europa socialista, onde é notável a apologia do sistema marxista.
Se destaca neste tipo de material, as edições dos fascículos El movimiento obrero, Documento Popular, Transformaciones, Siglomundo, na que se apreciam a tendência exclusiva de magnificação de feitos revolucionários no mundo, etapas socialistas obreiras, violência anti-imperialismo, organizações subversivas estrangeiras (Frente Sandinista de Liberación Nacional, Movimiento de Liberación Nacional Cubano, Guerrilla Vietnamita, Revolución Socialista Peruana) também nestas edições é destacável as notas de críticas dissociantes aos sistemas democráticos, Igreja católica, militarismos etc.”
Embora Spivacow e a grande maioria de seus companheiros de empreita fossem ideologicamente ligados à esquerda,era possível encontrar publicações que não se alinhavam com tal pensamento.
Ainda assim, a conclusão do documento indicava que àqueles 30% de publicações eram um atentado à realidade social vigente e difundiam ideologias, sistemas político-econômico-sociais marxistas que degolavam os princípios sustentados pela Constituição argentina.
Como todo árduo ferimento, aquela ação deixou cicatrizes. Bastava levantar a manga da camisa que cobria aquelas marcas e, olhando para elas, era possível lembrar a crueldade de um governo que adentrava em todos os espaços, até mesmo os imaginários, para reprimir e afanar quaisquer questionamentos e ações que a literatura pudesse evocar diante das mazelas sociais que vigoravam.
Entretanto, ferimentos como esse doem, mas não matam. Fortalecem o espírito e consolidam a certeza de que a literatura é uma poderosa arma contra a coerção imposta pelos governos ditadores ou contra qualquer outro que intente acobertar as máculas que desenvolvem em suas sociedades, muitas fezes infestadas de corrupção, hipocrisia, desigualdade e abusos diversos.
Como uma fênix que ressurgiu das cinzas, naquele dia, a literatura se revigorou.