Não há dúvidas de que a literatura é um importante instrumento questionador das mazelas de nossas sociedades, assumindo um papel sedicioso, insubmisso e revoltado, principalmente em realidades opressoras e injustas.
Entretanto, em regimes ditatoriais, essa “missão” nem sempre era levada adiante de forma tranquila. Em muitas vezes, mais do que o suor das mãos dos escritores, os literatos pagaram com seu sangue ou até mesmo com suas vidas.
As editoras que se arriscavam a disponibilizar no mercado os chamados livros “subversivos” praticamente assumiam a entrada na lista negra das ditaduras militares e passavam a ser perseguidas pelos inquisidores, respaldados nos mais diversos Malleus Maleficarum que foram produzidos em dezenas de países para alertar como e quando a “caça às bruxas” deveria acontecer.
Não foi diferente com o Centro Editor de América Latina. Fundando por Boris Spivacow em plena ditadura argentina, mais precisamente em 1966 quando Juan Carlos Onganía estava no poder, a editora passou a sofrer com a perseguição governamental desde muito cedo, mas tomou força no final da década de 1960.
No ano de 1969 Onganía sanciona a Lei Nacional 17.401 que reprimia as atividades consideradas comunistas. É neste momento que a CEAL sente mais incisivamente a ação dos órgãos de repressão, principalmente a SIDE, Secretaria de Inteligência do Estado e a DIPBA, Direção de Inteligência da Província de Buenos Aires.
A coleção Siglomundo. “La historia documental del siglo XX” é, então, proibida de circular no país. A justificativa emitida pela DIPBA era de alguns dos livros e textos do compêndio continham propaganda comunista e infringiam a lei estabelecida.
Não bastasse isso, a violência passou do campo literário para os abusos físicos. Em 1974 a Alianza Anticomunista Argentina, grupo paramilitar e terrorista mais conhecido como Triple A, mas que tinha apoio velado do governo, sequestrou e assassinou um funcionário da editora, Daniel Luaces. Segundo Judith Gociol, Spivacow e Oscar Díaz reconheceram o corpo do jovem no necrotério.
Após muita pressão popular, uma eleição foi convocada em 1973 afastando temporariamente os militares do poder. Entretanto em 1976, mais um golpe foi implementado, dessa vez com o nome de Processo de Reorganização Nacional.
A partir daí, a ditadura passou a importunar sistematicamente o Centro Editor, suas publicações e seus escritores.
Na próxima semana, vamos conhecer quais ações a ditadura tomava contra a editora e quão prejudicial elas foram para o desenvolvimento da literatura na Argentina.
A contribuição para o desenvolvimento cultural e a literatura na Argentina pelo Centro Editor de América Latina é reconhecido por todos os estudiosos que se dispuseram a analisar sua história, suas coleções e os diversos livros publicados por ela. A maioria dos acadêmicos que desenvolveram suas pesquisas ponderando sobre as ações produzidas pela editora também convergem quando o assunto é a dificuldade e a perseguição imposta pela ditadura do país ao trabalho de Spivacow e sua equipe.
Com o novo golpe militar em 1976, conhecido por suas ações de assassinatos e violação dos direitos humanos, praticando o que se conhece como “terrorismo de Estado”, a CEAL passou a sofrer mais fortemente com o jugo ditatorial. Era muito comum que as instalações do editorial sofressem com atentados e ameaças que atravessavam do físico para o fiscal, tudo visando dificultar ao máximo a publicação das obras.
As acusações, em geral, eram sempre as mesmas: publicação e venda de material subversivo. Em 1978, a promulgação da resolução 2977 do Ministério da Educação funcionou como uma espécie de Index Librorum Prohibitorum ao divulgar uma extensa lista de livros que estavam proibidos ou não eram recomendados. A coleção “Historia presente”, publicada pela CEAL, foi indexada por violar a resolução vigente.
No mesmo ano, agentes municipais e o Corpo de Cavalaria de Buenos Aires invadiram e trancaram os depósitos editoriais do Centro Editor. Na mesma ocasião, quatorze funcionários foram presos. Spivacow apresentou-se à Justiça e declarou ser o único responsável pelas acusações, solicitando que os trabalhadores fossem soltos.
Segundo o decreto 2322, a coleção referida acima selecionava cronologicamente determinados fatos da história mundial, principalmente da Argentina e América Latina, com o intuito de fazer apologia ao terrorismo, relatando diversas sublevações armadas.
Os materiais mais questionados pelos militares eram os livros que, segundo os próprios, exaltavam o marxismo, revoluções socialistas, movimentos operários, violência anti-imperialismo e organizações subversivas como a Frente Sandinista de Liberación Nacional, Movimiento de Liberación Nacional Cubano, Guerrilla Vietnamita, Revolución Socialista Peruana.
A punição pela impressão e divulgação de tal material foi o estarrecedor episódio da queima de um milhão e meio de exemplares do Centro Editor no ano de 1980, em um terreno baldio na rua Ferré, no Bairro de Sarandí, Buenos Aires, foi tão cruel quanto o assassinato de Luaces, então funcionário da empresa, pela Triple A. Outras queimas foram colocadas em prática em Córdoba e Rosario.
Somente com o final da ditadura em 1983 as perseguições cessaram, mas a ferida aberta pelos militares foi muito profunda. Nos anos que lhe restaram, antes da falência econômica e o consequente fechamento em 1995, a CEAL continuou a lutar bravamente para levar “livros para todos” e publicar “mais livros para mais”.
E nem mesmo a ditadura foi capaz de impedir que esse compromisso estabelecido nos longínquos anos de 1960 por Boris Spivacow fosse realizado.