Nunca li Paolo Guerrero. Ah, do futebol? Pensei que estávamos falando de literatura!

Desde o final do ano passado não é raro ler artigos em jornais e site peruanos, alguns até de grandes intelectuais, discutindo a substituição de Vargas Llosa pelo jogador de futebol Paolo Guerrero, como a maior figura peruana de representação mundial.

Não se trata aqui de abrir um debate e julgar que estão substituindo um literato por um jogador de futebol. Isso envolve questões culturais, apelo de mídia, paixão popular e, até certo ponto, o alcance das obras literárias, se estas conseguem atingir ou não todos os grupos sociais, pelo preço dos livros, interesse pela literatura, se há fomento desta nas escolas, etc.

No entanto, o que pode parecer um assunto sem sentido, nos revela alguns pontos interessantes para uma discussão que pode ser ampliada na busca de uma tentativa de compreensão sobre traços e características sociais.

Quando Vargas Llosa recebeu o prêmio Nobel de literatura em 2010 na Suécia, muitos telões estavam espalhados pela capital, Lima, para acompanhar a cerimônia de entrega. Grandes lojas transmitiam em suas vitrines o evento. Vargas Llosa era de certa forma o orgulho nacional.

De certa forma, porque é evidente que os grupos de esquerda no país não se identificam de maneira alguma com o escritor e dizem, em alto e bom tom, que este não representa o Peru em nenhum aspecto e é um traidor.

Mas essa rusga é antiga, desde quando Vargas Llosa rompeu com a esquerda devido à falta de liberdade propiciada pelo regime cubano, juntamente pelo apoio de Cuba a Rússia na invasão da Tchecoslováquia em 1968 e o caso Padilla, do qual já falamos em outra oportunidade.

Em dezembro de 2012, muitos telões espalhados pela cidade limenha. A tradicional Calle de las Pizzas estava tomada por pessoas que paravam para assistir Paolo Guerrero se tornando campeão mundial de futebol do Torneio Interclubes da FIFA. Foi recebido com gigantesca festa no aeroporto, quando esteve em férias no país. Todos queriam tocar Guerrero.

Antes mesmo do título, em outubro do mesmo ano, quando visitei o Peru, era comum os taxistas de Lima, ao saber minha nacionalidade, dizer que o jogador da moda era Paolo Guerrero. Mas nessa época, ainda era fácil encontrar comentários sobre Vargas Llosa.

Nas feirinhas de artesanato, no hotel, nos centros de lojas, quando me perguntavam o motivo da visita ao Peru e dizia sobre a minha pesquisa, muitos comentavam: “é um autor muito conhecido mundialmente por seus romances“. Embora eu tivesse a impressão de que nem todos tiveram a oportunidade de ler seus livros.

Em uma ocasião recente — Hay Festival, evento literário em Cartagena, Índia — quando questionado pela Gazeta Esportiva.net, o Nobel da Literatura falou sobre o tema:

“Nunca li Pablo Guerrero. Ah, do futebol? Pensei que estávamos falando de literatura… Paolo Guerrero é um grande jogador de futebol, mas vivemos em uma época justamente da civilização do espetáculo. Os grandes esportistas se converteram nos heróis que no passado eram os grandes pensadores, os escritores, os grandes teólogos, os grandes pastores.

Hoje em dia, não, são os futebolistas. Gosto muito de futebol, mas digamos que não podemos colocar na mesma categoria o futebol e a literatura. Cada um tem um espaço, e nesse espaço você pode os admirar muito, mas não os confundir. Essa falta de discriminação é o que resulta na degradação e na perversão da cultura do nosso tempo.”

Vargas Llosa é um fã assumido de futebol. Torcedor do Universitário de Lima e fã do Real Madrid, por sua ligação com a Espanha, admirou grandes jogadores peruanos das décadas de 1950 e 1960. O clube peruanolhe rendeu homenagem, após o Nobel.

No ano de 2011, foi ovacionado por mais de 60 mil torcedores do Universitário em pleno Estádio Nacional de Lima após receber o título de “sócio honorário”. O Real Madrid também já o homenageou. Foi convidado a dar o pontapé inicial da partida entre o time merengue e o Valência.

É algo comum, os norte-americanos idolatram seus campeões. Nós, brasileiros, também idolatramos e o mesmo acontece com todos os outros países. Mas, Vargas Llosa quer alertar também para não nos prendermos em idolatrias, comemorações por campeonatos esportivos e nos esquecermos de todo o resto, principalmente porque o futebol já foi e ainda é muito usado para esconder os problemas sociais, políticos e econômicos.

Quando fala em civilização do espetáculo, título de um dos seus mais recentes livros, o escritor nos atenta que o mundo passou a se preocupar muito mais com o “espetáculo”, com o divertimento, com aquilo que dá audiência, que vende muito; deixando de lado a reflexão, a opinião, a contestação. Responsabiliza a mídia, mas também a nós.

O que, talvez, o escritor queira ressaltar, é a importância da literatura como veículo de alerta para as mazelas da sociedade, corrupção, falta de liberdade, desigualdade social, racismo, etc.

E a importância que lhe deveria ser atribuída, principalmente, aproximá-la de todas as pessoas, independente de suas rendas, raça e formação acadêmica. Não é propriamente uma crítica ou julgamento ao povo peruano que idolatra seus ídolos esportivos, ao invés de idolatrar intelectuais. Longe disso…

“Os que sabem fazer gols e maravilhas no campo de futebol são pessoas a quem se deve admirar, sem nenhuma dúvida, mas não se pode admirá-los da mesma maneira de que admiramos um grande filósofo, um grande pensador, que enriquecem extraordinariamente a cultura do mundo, algo que tem uma grande importância na vida de uma sociedade. Um senhor que sabe meter gols maravilhosamente não é isso.”

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Publicado por

Mateus Sacoman

Professor universitário, historiador e músico.

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