Quimeras literárias, realidades urdidas

Roda, pólvora, telescópio, prensa de Gutenberg, lâmpada, telefone, televisão, radar, satélite e internet. Todas são, reconhecidamente, grandes invenções da humanidade, transformaram a vida de nossas sociedades de maneira singular e, provavelmente, em uma lista com os grandes inventos da história, ocupariam lugar cativo para a maioria das pessoas.

Porém, maior das invenções, mas nem sempre recordada, é a Literatura. Épica, lírica ou dramática, como especificavam os filósofos da Grécia antiga, ficcionais ou realistas, a arte de compor e expor os escritos nos faz atingir veredas inimagináveis com diretrizes infinitas.

Através dela, simplesmente tudo é possível. Até mesmo o que ainda não existe, as criativas mentes inventivas dos literatos são capazes de gerar. E para aquilo que posto está, pode-se recriar ou recontar. Já o que escondido fica, deliberadamente ou não, as Letras podem, nem sempre de forma axiomática, desvelar.

A Literatura, ocasionalmente, ludibria, mas sempre há verdade por trás das mentiras. Contudo, não mente como a gente quando quer enganar alguém. Ela invenciona, enreda, trama. Nela, “mendaci ne verum quidem dicenti creditur” não tem vez porque até mesmo o mentiroso revela o oculto com veracidade.

É caso dos romances desenvolvidos na América Latina principalmente nas décadas marcadas pela rigidez das ditaduras militares. Nesse período, a ideia de que a função mais importante da literatura, ainda que contasse com elementos de ficção, era documentar e eternizar a verdadeira vida foi consolidada.

Revelar a sociedade ocultada e dissimulada pelos governos e as elites políticas era algo primordial. Oferecia-se uma oportunidade de cavar até as entranhas desses regimes e apresentá-las de modo matizado, na tentativa de escapar às garras da censura e, ao mesmo tempo, despertar os cidadãos para a cruel verdade.

Como Vargas Llosa demonstra no livro de Claudio Magris: “uma sociedade impregnada de literatura é mais difícil de manipular desde o poder e de submeter e enganar, porque esse espírito de desassossego o qual desenvolvemos depois de enfrentarmos a uma grande obra literária, cria cidadãos críticos, independentes e mais livres do que aqueles que não vivem essa experiência”¹.

De todas as criações humanas, sem dúvida, a construção das realidades pela Literatura é uma engenhosidade extraordinária. As quimeras literárias, entendendo-as aqui como fantasias e ilusões criadas pelos literatos, ajudam-nos a compreender os caminhos e decisões que nossas sociedades desenvolvem.

Através dessas verdades fugidias conhecemos uma parte importante da totalidade de nossa realidade, escancarando erros e incertezas, mas acima de tudo, oportunizando a mudança e o aperfeiçoamento de nossos modos de viver e pensar.

¹ VARGAS LLOSA, Mario. Los vasos comunicantes: novela y sociedad. In: MAGRIS, Claudio; VARGAS LLOSA, Mario. La literatura es mi venganza. Barcelona: Seix Barral, 2011, p. 25–26.

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Publicado por

Mateus Sacoman

Professor universitário, historiador e músico.

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