Todo ano a mesma coisa acontece. Quando nos aproximamos do dia 31 de outubro — data em que tradicionalmente os países colonizados ou que sofreram influências culturais dos ingleses comemoram o Halloween — uma enxurrada de educadores, escritores, políticos e profissionais de diversas áreas, vêm a público para manifestar a indignação de se comemorar esta data em nosso território, por distintos motivos.
O assunto é tão sério que é possível encontrar diversos projetos de lei, federais, estaduais, municipais, que se propuseram a oficializar o trigésimo primeiro dia do mês de outubro como o Dia do Saci para combater o monstro estrangeiro que ameaça a cultura brasileira e impede que as crianças conheçam seu próprio folclore.
Em muitas matérias de jornais e sites especializados, é possível depreender dos textos que esse dia foi escolhido para “marcar a resistência” contra o famigerado evento internacional, como se estivéssemos aprisionados, conseguindo empreender uma rápida fuga e agora, em nosso mocambo, há caminho livre para desenvolver as estratégias de ataque e reação.
Outro objetivo, como o de “resgatar” as figuras do folclore brasileiro, também é constantemente apresentado. Ora, sequestraram as efígies nacionais e não avisaram ninguém? O folclore brasileiro sempre esteve aqui, o problema é que muitos de nós legamos a ele o cantinho das salas de aula e o expiamos somente em determinadas ocasiões e olhe lá.
O “Dia do Folclore” já existe desde 1965, espólio da ditadura militar brasileira, mas o grande problema é que ele continua sendo tratado como realmente um dia, algo superficial. Foi preciso intensificar as comemorações do Halloween para que se começasse a perceber que muito da cultura pátria sempre foi esquecida e o culpado não é o ilustre evento, a não ser o próprio brasileiro.
É muito mais fácil incriminar o que vem de fora, do que parar um pequeno momento e analisar as próprias atitudes. Em um mundo globalizado e que a internet dá livre acesso ao conhecimento de milhares de culturas diferentes, seria um crime obstaculizar que as pessoas tomem contato com diferentes manifestações e formas de pensar das que se está acostumado.
A origem do Halloween, embora não haja um consenso entre os historiadores, pode advir de uma celebração celta que marcava o final do período fértil (verão) no hemisfério norte, o chamado Samhain, há pelo menos 600 a.C. na região das atuais França e Inglaterra.
Por ser um período de transição, acreditava-se que o “véu” entre o mundo dos mortos e os vivos era desvelado, e os antepassados retornavam a suas casas para visitar seus familiares, alimentando-se e aquecendo-se do frio, por isso a preparação de alimentos e bebidas.
Com a expansão do cristianismo pela Europa, uma das práticas desenvolvidas para a conquista e perduração na fé dos novos fiéis era assimilar algumas festas pagãs às festividades cristãs.
No ano de 835, a Igreja Católica, através do Papa Gregório III, estabeleceu o dia 1° de novembro como o Dia de Todos os Santos. A data era celebrada inicialmente em maio. No século seguinte, o Papa Gregório IV tornou a celebração universal, auferindo-lhe, assim, uma celebração no dia anterior, a vigília.
Em inglês, temos a denominação de All Hallow’s Eve (Véspera de Todos os Santos), que depois se abreviou como Halloween.
Alguns componentes da festa foram agregados ao longo do tempo. Na Idade Média, provavelmente na França, principalmente no século XIV em que a Peste Negra assolou o continente europeu, as celebrações pelos mortos se popularizaram e no dia dedicado a eles, crianças batiam de porta em porta pedindo um pedaço de bolo em troca de orações pelas almas no outro mundo.
Não há uma concordância entre os historiadores, mas possivelmente na Inglaterra, o costume citado anteriormente tenha evoluído para o “trick or treat”, diretamente relacionado aos conflitos entre católicos e protestantes, em que os segundos se dirigiam fantasiados até às casas dos primeiros, exigindo cervejas e pasteis.
Essa era uma forma debochada de aludir à prisão e morte de Guy Fawkes, católico convertido que foi enforcado por participar do que seria a explosão do parlamento inglês na tentativa de garantir mais liberdade aos católicos na Inglaterra no início do século XVII.
Já no século XIX, nos EUA, outras modificações aconteceram. Por exemplo, a utilização das abóboras com velas. Na antiguidade, os nabos é que sofriam as modificações, sendo esculpidos em formatos de cabeça e ganhavam velas acesas. E foi efetivamente lá que a comemoração alcançou o formato atual e, com o avanço dos anos, passou a ser explorada comercialmente.
Como visto, a comemoração do Halloween é uma reunião de múltiplos componentes gerados em culturas díspares. Temos ali religiões e povos diferentes representados, ao menos abstratamente, algo que possibilita a busca pelo conhecimento de outros valores e práticas, se bem trabalhado.
Precisamos compreender que a cultura, em geral, é dinâmica, está em constante transformação, embora a velocidade dessa mudança possa ser irregular, dependendo da localidade. Ela também pode ser estável, sem dúvidas, mas o Brasil se demonstra um país em que a cultura é muito intercomunicativa e instigada por elementos oriundos dos mais diferentes lugares do mundo. Querer combater as influências externas mediante um contexto em que as nações estão mais próximas a cada segundo é quase inverossímil.
Não precisamos banir o diálogo intercultural para que o folclore nacional possa ser conhecido por todo o território brasileiro. Por que os materiais didáticos escolares não podem trabalhar textos, imagens, problemas matemáticos, entre tantas outras formas, que contenham elementos ou personagens do folclore tupiniquim ligados ao cotidiano dos alunos?
Não se vê muito isso nas escolas, a não ser em conteúdos programados para o mês de agosto ou outubro que acabam se desconectando totalmente de um processo mais significativo de compreensão da cultura do país. E isso pode ser feito, sem tolher a oportunidade de que os estudantes tomem contato também com os hábitos e costumes de outros povos.
Há espaço para a convivência entre o Halloween e os personagens míticos brasileiros, mas é necessário proporcionar muito mais oportunidades para que as crianças conheçam os costumes, histórias e saberes de sua nação. E isso deve ocorrer dentro de uma perspectiva pacificadora e abrangente, exatamente o contrário do que muitos pregam: uma cruzada entre brasilidade e estrangeirismo em que os estudantes parecem ser obrigados a escolher um ao outro.