O boom literário latino-americano, o que restou?

Para debater e analisar os alcances e resultantes do boom latino americano, movimento “literário” dos anos de 1960, nesta última semana aconteceu em Madri, Espanha, uma conferência chamada “El canon del boom”.

Além das discussões, o evento prestou homenagem aos escritores do movimento e marcou o quinquagésimo aniversário da publicação de “La ciudad e los perros“, de Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura em 2010, Doutor Honoris Causa pela Universidad Europea de Madrid e um dos principais representantes deste fenômeno literário.

Estiveram presentes ainda os escritores Jorge Eduardo Benavides (Peru), Gonzalo Celorio (México), Gustavo Guerrero (Venezuela) e Fernando Savater (Espanha).

Quatro nacionalidades para discutir um dos mais proeminentes movimentos literários do século passado a partir de quatro perspectivas diferentes, o que trouxe um grandioso enriquecimento às mesas redondas.

Durante seu discurso, Jorge Eduardo Benavides destacou o domínio de Vargas Llosa em criar personagens com que a sociedade se vê, sente, com a possibilidade de identificação: “A transição entre a realidade e a ficção, como se vê em “El Hablador” é surpreendente”.

Gonzalo Celorio salientou que o boom literário não foi somente um fenômeno espontâneo e que não poderia ter ocorrido sem os romancistas que vieram antes deles, ressaltando a importância de outros grupos de escritores, como por exemplo, os indigenistas: “O boom alcançou os desejos literários dos primeiros novelistas latino-americanos: tornaram-se obras universais”.

Já Vargas Llosa disse que o “entusiasmo compartilhado” e a “fraternidade” que uniu os escritores latino-americanos do boom literário não durou mais de dez anos, e que a política foi o que criou uma “enorme divisão” entre os autores partícipes daquela “empresa comum” (como, por exemplo, o caso Padilla e os debates sobre apoio ou não do regime cubano, entre outros problemas de ordem pessoal, como a briga com García Márquez, mas essa vai por minha conta).

Além de relembrar grandes nomes que construíram pouco a pouco a trajetória de sucesso do grupo como Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Carlos Fuentes e Alejo Carpentier.

Gustavo Guerrero também explicou como esse gênero evoluiu desde os anos de 1950, de um nacionalismo para uma perspectiva mais global, guiado por escritores que atingiram fama mundial: “O boom literário alcançou os objetivos da antiga linhagem cosmopolita de artistas da América Latina, atingindo reconhecimento internacional.”

Por último, Fernando Savater, espanhol, comentou sobre a influência que o boom exerceu sobre literatura espanhola por “alargar os horizontes narrativos de nossos trabalhos”, em uma situação que foi “sufocante como resultado da repressão franquista”.

Ele também enfatizou a importância da imaginação e do humor, tanto na escrita, quanto no cotidiano, com frases como “A imaginação possibilita a realidade ir mais além. Imaginação é o que existe por trás da realidade”.

Mas por fim, o que restou do boom literário? Como se autodenominou, Vargas Llosa é um dos poucos sobreviventes do grupo que continua a manter os compromissos firmados, uma espécie de contrato moral e intelectual, segundo sua própria visão como escritor.

Na verdade, o que era uma empreitada coletiva, se tornou algo individual, como o próprio escritor relembra, na ideia de união promovida por Carlos Fuentes quando sugeriu que cada um dos autores latino-americanos escrevesse uma novela curta sobre seu ditador correspondente, algo que não veio a acontecer de maneira unida, embora, no fim, cada um tenha feito por sua conta.

Logicamente, mais cedo ou mais tarde, a “família boom literário” haveria de se dissolver, um processo natural, até porque o grupo surgiu num período em que havia “lutas para serem lutadas”, causas específicas de um contexto histórico que jamais se repete.

O que se pode apontar é que talvez tenha acabado antes do que todos gostariam devido às dissonâncias de opinião em relação ao regime de Cuba, quando para alguns, denunciar as mazelas e a falta de liberdade, seria trair o movimento e houveram traições, nesse sentido.

O caso Padilla e o apoio dado à invasão soviética na antiga Iugoslávia pelos cubanos foram catalisadores, acelerando consideravelmente a chama da separação que já existia.

E como todo catalisador, que acelera uma reação e diminui a energia de ativação, o grupo foi se afastando pelas divergência de opiniões e posicionamentos políticos, teve sua energia ceifada. O que restou do boom literário? Seus grandes escritores e suas obras riquíssimas que hão de perdurar, de certa forma, eternamente.

(Contribuíram: Coluna What´s going on da Universidad Europea de Madrid e Infolatam.com.br)

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Sobre romance… Vargas Llosa

Há várias formas de se escrever um romance. Muito além de respeitar cânones literários para a construção desse tipo de texto, a escrita do romance varia muito em intenção e estética, muito em função também do período em que é escrito e por quem é escrito, obviamente. Permite uma certa liberdade, no sentido da criação, expressão e ritmo em que todo o enredo é apresentado, mas sempre com a necessidade de parâmetros da escrita, pois ele precisa se fazer entender — ou, ao menos, deveria — ainda que exija muita dedicação da parte do leitor.

São muitos os vieses dois quais poderíamos partir na busca de uma interpretação do que de fato é a elaboração de romances e suas intenções. Por exemplo, autores podem se dedicar à escrita desse gênero literário com intenções de nos mostrar a realidade de outra forma e derivando disso, indicar as mazelas e problemas de sua sociedade, fazendo o leitor refletir (com a intenção de que seja mais uma ferramenta para o debate de determinado assunto), ou simplesmente apenas entreter.

É possível também trabalhar questões de fundo humanista, afetivo, psicológico, entre outros, ainda que em diversas vezes seja difícil identificar a temática ou o propósito do texto.

Muitos autores literários, críticos e estudiosos versam constantemente sobre o tema, permitindo uma vasta gama de conceitos e diferentes formas de interpretação. No entanto, muito chama atenção a forma com que Mario Vargas Llosa, vencedor do prêmio Nobel de Literatura em 2010, aponta algumas características do que é o romance para ele.

Em sua autobiografia, Peixe na Água, Vargas Llosa aponta que boa parte do que fez como romancistas foi usar uma experiência pessoal como ponto de partida para a fantasia, empregando uma forma que finge ser realista por meio de detalhes geográficos e urbanos preciosos, obtendo assim uma objetividade através de diálogos e descrições feitas a partir de um ponto de vista que chama de “impessoal”, apagando traços de autoria; e principalmente, fazendo uso de uma atitude crítica em relação à determinada problemática, ou seja, o contexto ou horizonte do enredo.

Logicamente, como citado no começo do texto, os romances variam e isso depende das crenças de seus atores, o que norteia seus pensamentos e forma de agir. Vargas Llosa relata, no mesmo livro, que uma das funções mais importantes da literatura, “sua vocação”, era ser uma forma de resistência ao poder, ou seja, uma atividade a partir da qual todas as formas de poderes pudessem ser permanentemente questionadas, pois a boa literatura, segundo seu ponto de vista, mostra as “insuficiências da vida, a limitação de todo poder para preencher as aspirações humanas”.

Acreditava ainda, ser ingenuidade de alguns escritores de seu tempo pensar que seria possível escrever bons romances apenas inventando bons “temas”, pois um romance bem-sucedido é mais que isso,

“é uma esforçada operação intelectual, o trabalho de uma linguagem e invenção de uma ordem narrativa, de uma organização do tempo, de determinados movimentos, de determinada informação e de determinados silêncios dos quais depende por completo que uma ficção seja verdadeira ou falsa, comovedora ou ridícula, séria ou tola.”

Importante ressaltar que o próprio romance tem subdivisões, se assim posso dizer, diversas formas e roupagens. Vargas Llosa nos aponta uma delas, fazendo uso de seus romances também para expor suas críticas à realidade peruana, em diversos aspectos como o político, econômico, cultural e social, prezando sempre pela questão da liberdade.

Ainda que existam muitas formas de se “romancear”, é interessante que novos escritores e os já calejados de nosso período pensem, à luz dos mais diversos pontos de vistas, sobre o que é escrever para si próprios e, principalmente, o por quê de se escrever, para muito além de cumprir um desejo pessoal, cooperar de fato para que o campo da Literatura se enriqueça e venha a contribuir para a sociedade de alguma maneira ou de diversas maneiras.

E, embora se tenha abordado aqui a questão do romance segundo a perspectiva vargallosiana, é importante refletir sobre esses questionamentos, seja lá qual for o gênero literário escolhido. Não que todo o texto literário necessite que resulte dele uma ação prática na realidade humana, mas que romances, contos, poemas, etc., não sejam apenas um exercício vago, errante e incerto.

Literatura, válvula de escape nas ditaduras Latino Americanas

Recorrente, o tema ditadura sempre aparece em trabalhos acadêmicos ou nas notícias do cotidiano, em jornais, revistas, canais de TV. Para alguns, o tema é um fardo, está desgastado. Mas, na verdade, as experiências das ditaduras na América Latina foram tão profundas que é complicado deixar de escrever ou falar sobre elas, ainda mais quando envolvida na Literatura.

O que tem acontecido mais constantemente são as inserções de novas perspectivas de análises e subtemas. Com recortes mais específicos e temáticas até então pouco trabalhadas. A literatura desse período (décadas de 1960, 1970 e 1980) é constantemente abordada e recebe grande importância como fonte de análise devido às denúncias das mazelas do sistema e categorizações das sociedades durante o período ditatorial.

A geração de escritores, principalmente do final da década de 1950 até 1970, adotavam uma visão literária em que o social prevalecia, de certa forma, sobre o artístico (Arguedas, Mariátegui, Haya de la Torre, Sarmiento, Haroldo Conti, Rodó, Rodolfo Walsh, Padilla, etc.

Alguns desses nomes escreveram com tom crítico sobre suas sociedades sob regimes mais opressores ainda que não houvesse uma ditadura propriamente dita, antes mesmo dos anos de 1950.). Era inconcebível que o escritor separasse o seu trabalho de uma ação, de uma atitude, por muitas vezes, intransigente (não sentido de intolerância), revolucionária perante os militares.

Logicamente, as obras desses períodos, ao menos as que merecem destaque, tinham grande valor artístico, enriqueciam a cultura de seus países. Mas primeiramente, a intenção era a de ser responsável socialmente, buscando apresentar da melhor maneira possível soluções para os problemas de suas nações.

Mas logo uma pergunta aparece em nossas mentes viciadas pelo temor da ditadura: “como esses escritores agiam dessa forma mediante um sistema tão ferrenho e cruel?”. Por incrível que parece, segundo Vargas Llosa em seu livro “La utopía arcaica — José María Arguedas y las ficciones del indigenismo”, esses livros não eram submetidos por controle tão rígido e, com isso, podiam abordar temas impensáveis para jornais e ambientes escolares, acadêmicos.

Os romances, poemas, ensaios dificilmente eram censurados e um dos motivos, segundo o autor peruano, era o grande número de analfabetos nos países latino-americanos, onde os próprios governantes exibiam uma densa ignorância.

Aí reside a importância dos mais diversos gêneros literários do período, estes passaram a ser estudados por outras disciplinas como um meio de investigação da realidade e instrumento de crítica e agitação perante as ditaduras.

Vargas Llosa é taxativo ao escrever que as descrições mais acertadas dos problemas da América Latina durante esse período estão presentes na Literatura, ainda que nas ficções e que, graças à ação desses escritores, as inequidades do continente foram documentadas. Cumpriram a função de informar e para usar uma expressão de Stendhall ao definir os romances, “foram os espelhos pelos quais os latino-americanos podiam ver seus rostos”.

Por fim, fica nítido que a função da literatura foi também documentar a verdadeira vida, a realidade das nações encobertas pelos governos e as elites políticas, rebatendo muitas das vezes a versão oficial que era dada sobre os fatos, revelando a verdade.

Nesse período, o literato substituiu o acadêmico, o periodista, todos censurados. Descrevendo os males da realidade e prescrevendo as soluções, desbaratando as mentiras oficiais e realçando as verdades, a Literatura carregou consigo a função de protestar e prognosticar a mudança necessária na direção política dos países ditatoriais, colocando-se a serviço de um ideal cívico, democrático.

De volta às origens? Vargas Llosa e El Héroe Discreto

Na oitava edição do Hay Festival na Colômbia, em um colóquio com o ensaísta Carlos Granés, na cidade de Cartagena, Mario Vargas Llosa anunciou que concluiu o romance El héroe discreto que deve ser lançado em breve.

A trama está ambientada no Peru atual e trabalha as questões cotidianas, envolvendo todo o contexto econômico, político e social do país. Segundo Vargas Llosa, hoje o país tem de fato uma democracia e uma ampla defesa pela liberdade.

Além disso, existe uma política de abertura de proteção da propriedade privada — uma de suas propostas quando concorreu à presidência em 1990 — o estímulo ao investimento, estímulo à criação de riqueza através da empresa privada, levando a sociedade peruana rumo ao progresso.

Toda essa mudança, esse desenvolvimento, gerou uma nova problemática. Segundo o próprio escritor gerou também novas tensões, muitas interrogações e uma instigante busca por respostas. Desse panorama é que floresceram situações e personagens que estarão presentes neste romance.

Pensar esse novo livro de Vargas Llosa como um retorno às origens é uma posição válida a se tomar, pois após a publicação de Conversación en La Catedral, de 1969, a produção do escritor peruano se distanciou de temas como a política e os problemas sociais do Peru. Para ser mais preciso suas obras iniciais — Los Jefes (1959), La ciudad e los perros (1962), La Casa Verde (1965), Los Cachorros (1968) — também tinham a sociedade peruana como tema central.

Não quer dizer, no entanto, que em suas obras posteriores o literato deixou seu compromisso de escritor engajado, preocupado com o período em que vive e um analista crítico de sua sociedade. Mas suas primeiras obras literárias, além dos ensaios e artigos, se constituíram, sem dúvidas, em vias para manifestação de suas interpretações sobre a realidade peruana e latino-americana que vivenciou, construindo para seus leitores uma imagem sobre o lugar de onde se estava escrevendo e as relações sociais nele existentes.

Seus romances expressaram também suas ideias políticas, entre tantas outras, e se tornam indispensáveis para uma abrangente compreensão sobre os debates intelectuais na literatura em determinado contexto em que essas obras se inseriam, versando sobre os mais diversos temas-problema, assumindo o compromisso com sua realidade social.

A expetativa para seu novo romance é grande. Se em suas primeiras obras o Peru parecia perdido, uma sociedade imersa nas desigualdades e prejuízos sociais, além de uma economia fraca e sem perspectivas de desenvolvimento, ou seja, manifestações dos males típicos que infestavam o Peru, herdeiro do colonialismo ibérico, das ditaduras e da corrupção endêmicas baseadas em ideologias que conservaram o país, e tantas outras nações latino-americanas, na periferia da modernidade e do autêntico liberalismo democrático.

Será que depois de tanto tempo, com seu novo livro El Héroe Discreto, Mario Vargas Llosa tem as respostas para o questionamento do personagem Santiago Zavala de Conversación en la CatedralEn que momento se jodió el Pérú?” e se realmente agora o país caminha no rumo certo? Vamos aguardar…

Spivacow e o Centro Editor de América Latina

É impossível iniciar qualquer discussão sobre literatura argentina no século XX sem destacar a importância do Centro Editor de América Latina, o CEAL. O editorial foi constituído no ano de 1966 pelo editor José Boris Spivacow com a intenção de publicar grandes livros que, em sua opinião, deveriam ser lidos por todos os cidadãos argentinos, independentemente de suas condições socioeconômicas.

Quando decidiu iniciar a empreitada que mudaria a face cultural da Argentina, Spivacow não era “marinheiro de primeira viagem”. Com muita competência, em 1941, começou a trabalhar na sessão infantil do Editorial Abril e no ano de 1955, a convite do amigo Arnaldo Orfila Reynal, assumiu o cargo de gestor da Editorial Universitaria de Buenos Aires (EUDEBA), editora pertencente a Universidad de Bueno Aires, obviamente especializada em publicações acadêmicas.

Lá, permaneceu até que o militar Juan Carlos Onganía, assumiu a presidência do país após desenvolver o golpe de estado em 1966 — autodenominado “Revolución Argentina” — e, de forma ditatorial, interviu na universidade ocasionando a renúncia de Spivacow que em setembro do mesmo ano deu início ao CEAL.

Importantes nomes da literatura e do periodismo nacional estiverem ao lado do então fundador, como Oscar Díaz, Beatriz Sarlo, Aníbal Ford, Horacio Achával, Graciela Montes, Susana Zanetti, Jorge Lafforgue, entre outros.

O Centro Editor, sempre que possível, prezou pela qualidade de suas publicações (tanto pelos projetos gráficos, quanto por conteúdo), independente do direcionamento de público, tendo como lema “libros para todos, más libros para más”. Não por acaso, economicamente falando, a tarefa nem sempre foi rentável.

Grandes coleções e destacados escritores eram publicados, gerando os montantes necessários para as publicações de livros de menor apelo mercadológico, mas não menos significativos. Logicamente, não podemos pensar esse grupo editorial somente através de uma visão filantrópica, até porque sem dinheiro, o grandioso projeto não teria durado muito tempo.

Mas muitas linhas de publicações eram colocadas no mercado a baixo custo e em regiões habitacionalmente menores, para que a literatura pudesse abranger um maior número de leitores. Para que isso pudesse acontecer, uma rede de livrarias própria e pequenas bancas foram espalhadas inicialmente por Buenos Aires.

Para além da rentabilidade econômica, que de fato nunca aconteceu, o legado proporcionado pelas publicações e princípios editoriais da CEAL são infinitos, incontáveis e imprescindíveis para a nação argentina. Doente, em 1994, Spivacow faleceu. Tendo levado, em seus últimos dias, uma vida modesta e orgulhosa jamais ter extraído qualquer quantia da editora para manter a “roda cultural” girando.

Sem condições de ser mantida por seus descendentes e amigos, a editora fechou as portas em 1995, mas sua herança perdurou e perdura nos milhares de livros publicados e nas mentes dos milhões de leitores transformados por elas, espalhados por todo o mundo.

O crime incendo-literário da Ferré

Se os livros são para todos, como dizia Boris Spivacow, ao criar o Centro Editor de América Latina, então é melhor queimá-los. Assim pensava a ditadura militar argentina e seus capachos quando decidiram queimar toneladas e mais toneladas de livros editados pela CEAL.

O triste episódio do crime incendo-literário da Ferré aconteceu no ano de 1980, mais exatamente no dia 26 de junho, e foi o mais duro golpe já sofrido pela editora. Não que ocorrências iguais ou tão mais lamentáveis não tenham sucedido, como a série de bombardeios que a sede editorial recebeu ao longo dos anos ditatoriais ou o assassinato do funcionário Daniel Luaces, em 1974, pelos agentes do governo.

Mas incendiar cerca de um milhão e meio de exemplares foi um cruel ferimento a todos os ideais literários daqueles que buscavam uma argentina democrática através também da literatura.

Um terreno baldio na rua Ferré, no Bairro de Sarandí em Buenos Aires foi o escolhido para receber tamanho ato de terror contra qualquer tentativa de questionamento e liberdade que as obras pudessem suscitar em seus leitores. Boris foi obrigado a assistir.

Utilizando-se da lei de Segurança Nacional LEY Nº 20.840, ainda em 1978, que impunha penalidades para todas as atividades consideradas subversivas, em suas diversas formas de manifestações, o juiz federal Gustavo de la Serna determinou que os depósitos da CEAL fossem aprisionados, juntamente com 14 funcionários. Da totalidade dos livros, 30% foram considerados perturbadores da ordem social, de acordo com o informe de inteligência:

“Material questionável: No mesmo, podemos constatar a existência de livros tais como Sociedad e Ideología, de Marx y Nietszche, Existencialismo, marxismo y empirismo lógico, El imperialismo, defensa y crítica, Las reformas económicas de la Europa socialista, onde é notável a apologia do sistema marxista.

Se destaca neste tipo de material, as edições dos fascículos El movimiento obrero, Documento Popular, Transformaciones, Siglomundo, na que se apreciam a tendência exclusiva de magnificação de feitos revolucionários no mundo, etapas socialistas obreiras, violência anti-imperialismo, organizações subversivas estrangeiras (Frente Sandinista de Liberación Nacional, Movimiento de Liberación Nacional Cubano, Guerrilla Vietnamita, Revolución Socialista Peruana) também nestas edições é destacável as notas de críticas dissociantes aos sistemas democráticos, Igreja católica, militarismos etc.”

Embora Spivacow e a grande maioria de seus companheiros de empreita fossem ideologicamente ligados à esquerda,era possível encontrar publicações que não se alinhavam com tal pensamento.

Ainda assim, a conclusão do documento indicava que àqueles 30% de publicações eram um atentado à realidade social vigente e difundiam ideologias, sistemas político-econômico-sociais marxistas que degolavam os princípios sustentados pela Constituição argentina.

Como todo árduo ferimento, aquela ação deixou cicatrizes. Bastava levantar a manga da camisa que cobria aquelas marcas e, olhando para elas, era possível lembrar a crueldade de um governo que adentrava em todos os espaços, até mesmo os imaginários, para reprimir e afanar quaisquer questionamentos e ações que a literatura pudesse evocar diante das mazelas sociais que vigoravam.

Entretanto, ferimentos como esse doem, mas não matam. Fortalecem o espírito e consolidam a certeza de que a literatura é uma poderosa arma contra a coerção imposta pelos governos ditadores ou contra qualquer outro que intente acobertar as máculas que desenvolvem em suas sociedades, muitas fezes infestadas de corrupção, hipocrisia, desigualdade e abusos diversos.

Como uma fênix que ressurgiu das cinzas, naquele dia, a literatura se revigorou.

O século XIV, em livros, na Inglaterra

Lá se foi o ano de 2011 e para alguns, as férias merecidas começaram em dezembro, outros em janeiro. Nada melhor, portanto, do que colocar a leitura em dia. Baseado no meu trabalho de conclusão de curso de 2010 resolvi indicar duas boas leituras para as férias. No entanto, é importante contextualizar o período em que foram confeccionadas, facilitando o entendimento do porquê dessas obras e quais eram seus objetivos.

No século XIV — período de crise para Igreja medieval, principalmente pelo Cisma do Ocidente, onde a Cristandade se viu diante de dois papas, um em Roma, e outro em Avignon e, além disso, na Inglaterra, a Guerra dos Cem Anos — a Igreja era vista com descrença tanto pelo afastamento dos clérigos para com os fiéis, principalmente os mais humildes, no período da Peste Negra, quanto pela vida mundana que parte dos religiosos levavam.

Mediante a ação propagandista que as Ordens Mendicantes efetuavam, tanto na Inglaterra quanto em outras regiões da Europa, o cristianismo começou a tornar-se uma religião mais “popular”, o que deixara de ser há muitos séculos, desde os primeiros anos da era cristã, e aos poucos foi se revelando ao povo laico um certo número de preceitos que lhe eram até então inacessíveis.

Imersas nesse período conturbado, duas obras produzidas no século XIV contribuem para a busca de nuances sobre essa época: A Nuvem do Não-Saber e Os Contos da Cantuária, ambas do século XIV inglês.

A primeira, escrita na segunda metade do século XIV por um monge inglês desconhecido, provavelmente da Ordem dos Cartuxos e a segunda de Geoffrey Chaucer, uma coleção de contos escritos a partir de 1387, muito rica em personagens da sociedade medieval; além de revelar acontecimentos curiosos, passagens pitorescas, citações clássicas, ensinamentos morais, relacionados à vida, nos ajuda a compreender os costumes do século XIV na Inglaterra.

Contos da Cantuária, ficcional e recheada de contos, nos relata uma romaria de vinte e nove peregrinos, no qual se inclui o próprio autor, rumo à cidade da Cantuária para a visita ao túmulo de Santo Tomás Beckett, com passagens, até certo ponto, com uma carga de humor, Chaucer trata de problemas como a vida mundana do clero, as traições dos casais, os excessos da sociedade, dentre outros. Vale a pena conferir. A obra tem 302 páginas e pode se encontradas em sebos.

A Nuvem do Não-Saber exige uma atenção maior em sua leitura, com uma linguagem própria dos monges da épocam está inserida mais na área de ensinamentos, ou melhor, doutrinamentos sobre a contemplação do que propriamente um livro de histórias, portanto, é uma obra para refletir. Religioso ou não, o leitor desta obra pode buscar respostas e questionamentos sobre determinados pensamentos em relação a Deus e a como se dirigir a este.

Além disso, o livro pode dar respostas a quem procura um ponto de contato com o modo de orar proposto pelo autor anônimo e as técnicas orientais de meditação, como a yoga e o zazen. Algumas das indicações podem servir para o nosso dia-a-dia, embora eu seja constantemente criticado por acreditar nisto, principalmente porque a obra dizia respeito a um determinado período.

Ainda assim inspirou e ainda inspira uma série de autores. Indico a edição da Editora Vozes, a da outra editora é inconcisa e cheia de erros. O livro tem 188 páginas e pode ser facilmente adquirido em livrarias ou pela internet.

Se realmente alguém se aventurar, é importante, como já citei, compreender esse período tão conturbado em que as obras foram feitas, vai contribuir para o entendimento em si dos livros. Boa leitura!