Romances para entender a realidade, Vargas Llosa

Como Vargas Llosa costumeiramente enfatiza, os entendidos de realidade não são os acadêmicos, nem os jornalistas, que elaboram textos e pesquisas sobre a realidade de nossas sociedades. Quem, na verdade, entende de nossa realidade são os sonhadores, assim nomeava os literatos.

Quando os romances realmente são efetivos e se constituem verdadeiras formas para alimentar a insatisfação dos seres humanos, nos subjugam e nos extraem de nossas vidas, repletas de caos e confusão, fazendo-nos viver a experiência mágica da leitura de uma ficção como uma realidade.

Não por acaso, muitos pesquisadores — historiadores, sociólogos, etc. — dedicam-se, nas últimas décadas, a estudar romances e escritores para trabalhar com temas que buscam compreender determinada época ou acontecimento em diversos países.

Logicamente, os romances realistas possibilitam um trabalho mais aprofundado, pois lidam em seus enredos com questões que dominam os debates em nossas sociedades, ou como pano de fundo ou delatadas em suas superfícies. Além disso, possibilitam compreender a visão dos literatos, expressa nas entrelinhas dos textos.

Segundo o escritor peruano, através da experiência de contato com um romance realista, voltamos ao mundo com uma sensibilidade muito aguçada, penetrante, para compreender de forma mais ampla tudo aquilo que nos rodeia, para enxergar mais claramente as imposições e hierarquias entre o que é importante e o que de fato não é relevante, mantendo-nos sempre com uma atitude crítica.

Mesmo que o modos operandi da escrita do romance apresente um leque de opções, constantemente é possível ver nas intervenções atuais do escritor a vontade de avistar novos literatos que se preocupem com o mundo em que vivem, cooperando para que o campo literário venha a se enriquecer e possa contribuir para a sociedade, de uma forma ou de outra, atuando de fato através dos textos.

Dentro deste quadro, para que a literatura possa efetivamente contribuir para analisar a realidade, Vargas Llosa enxerga a necessidade de que os literatos continuem se engajando, refletindo e questionando, à luz dos mais diversos pontos de vistas políticos, norteados sempre pelo pensamento do que é escrever e, de modo impreterível, o porquê de se escrever e a importância da função de escritor; superando a barreira individual, de apenas cumprir um desejo pessoal.

Dreyfus, Émile Zola e a literatura engajada

A noção de literatura engajada abarca duas interpretações. A primeira, centrada em Jean-Paul Sartre, floresceu no contexto de pós-guerra e tinha essa literatura engajada como algo historicamente situado. Essa concepção envolveria uma atenção especial com questionamento políticos e sociais, com ideais demarcados pela Revolução Russa de 1917.

A segunda interpretação, com Andre Malraux e Albert Camus como principais figuras, entendiam a literatura como mais ampla e flexível, com questionamento mais humanos e sobre a organização das cidades, defensora de valores como a justiça e liberdade, sem agarrar-se especificamente à Revolução de 1917.

O engajamento literário se tornou visível mais precisamente no século XX, mas seu ponto de partida foi o famoso caso Dreyfus. Foi nesse episódio em que o debate entre os escritores ganhou notoriedade. Esse caso demarca o surgimento da noção de “intelectual” na França. Pois possibilitou um duplo cenário: a submersão dos intelectuais e a literatura engajada com práticas que começavam a se definir.

Explicando o famoso caso: em 1898, houve a publicação do texto do famoso literato Émile Zola, J’accuse, denunciando os erros e abusos no processo de 1894, sofrido pelo oficial de artilharia do exército francês, Alfred Dreyfus, acusado de traição por espionar em favor da Alemanha.

Zola obteve apoio de outros escritores, contribuindo para que anos depois o processo fosse revisado. Essa intervenção aconteceu no momento em que Zola detinha grande reputação por seus romances e poemas, utilizando-se dela para intervir. Dreyfus foi considerado inocente. As acusações contra ele foram baseadas em documentos falsos por sua origem judaica, demonstrando um claro xenofobismo que tomava conta de muitos países na Europa.

Mas é preciso entender o caso Dreyfus, como um acontecimento que reconfigurou o papel do intelectual e não que o tenha criado, mas suscitou o surgimento de uma literatura engajada.

Dessa forma, podemos entender que o texto de um literato converteu-se em uma intervenção em sua sociedade, em um debate importantíssimo para o seu contexto. Essa “intercessão” foi discutida por seus pares — apoiadores ou não — pela sociedade civil, pelo governo francês, etc.

Assim, suas palavras foram levadas em consideração, abrindo precedentes para que outros escritores — desde que alcançassem reputação suficiente para intervir — pudessem participar das grandes questões de suas nações, continentes ou do planeta.

Vargas Llosa e sua distorção convulsiva da realidade

Os romances marcam parte importante da trajetória do escritor peruano Mario Vargas Llosa. Através dos enredos destas ficções o literato atuava na sociedade peruana, manifestando suas concepções sobre os grandes problemas de sua nação.

Pensando sobre o processo de escrita desses romances, após longos estudos para minha pesquisa de mestrado, conclui que é possível nomeá-lo com a terminologia “distorção convulsiva da realidade” da qual Vargas Llosa fala.

A “distorção” está relacionada com a ficção, pois a “mentira” aparece, mas sempre baseada na vivência do peruano, muito próximo da realidade, tornando-se, então, uma manifestação da vida.

Já a palavra “convulsiva” é usada porque se torna uma espécie de apocalipse, uma violenta agitação dentro de um conjunto de elementos reais (àqueles que podemos encontrar em nosso cotidiano), mas de forma que os enriqueça, ainda que venha a deformá-los. Por exemplo, contanto uma história fictícia para chamar a atenção dos leitores sobre algum problema social.

Inseridas neste contexto de seu primeiro entendimento estão as obras Los Jefes (1959), La ciudad e los perros (1962), La Casa Verde (1965), Los Cachorros (1967) e Conversación en la Catedral (1969). São textos denominados por vários críticos literários de “novela total”.

Isto porque apresentam panoramas de momentos conturbados e crises da realidade de seu país. Assim, as tramas deveriam tentar açambarcar praticamente todos os elementos da realidade, representando-os da forma mais total possível, diferentemente da sua visão a partir de 1970.

Embora possamos demarcar duas concepções, o escritor manteve ao longo de sua carreira a postura de engajamento. A tese central permaneceu a mesma, isto é, seus romances deveriam contribuir de alguma forma para alertar seus leitores sobre os problemas da realidade.

Ou seja, suas obras continuaram como um espaço para se engajar e exercer a intelectualidade que teria mudanças em relação ao seu fazer, mas que continuaria revelando o comprometimento e a responsabilidade do literato com seu tempo.

De cerro a cero, Carlos Franz

Dando continuidade ao projeto Nueva narrativa chilena de los noventa, trabalhando grandes escritores que constituíram essa geração, Carlos Franz é o escritor da vez. Nascido em Genebra, na Suíça, em 1959, o escritor se mudou para o Chile já no início dos anos de 1970, graças à profissão de seu pai, Carlos Franz Núñez, diplomata.

Assim como boa parte dos literatos da nova narrativa, Franz também estudou na Universidad de Chile, formando-se em Direito. Após se tornar advogado, o jovem suíço resolveu abandonar a carreira e ser escritor, participando, no início da década de 1980 da famosa oficina literária de José Donoso. Viveu ainda na Alemanha, Inglaterra e Espanha, até retornar em 2012 para cuidar de sua filha Serena.

Desde então, iniciou uma carreira vigorosa e muito premiada. Recebendo o Premio Latinoamericano de Novela CICLA de 1988, Premio Municipal de Santiago de 2002, Premio del Consejo Nacional del Libro de Chile em 2005, Premio Internacional de Novela La Nación-Sudamericana, tornando-se membro da Academia Chilena de la Lengua em 2013.

Muitas destas premiações tiveram como culpadas as obras Santiago cero, romance de 1988 e La muralla enterrada. Santiago, ciudad imaginaria, ensaio publicado em 2001. Além disso, El desierto, Almuerzo de vampiros e La prisionera, livros dos anos 2000, também ganharam muito destaque na imprensa internacional.

Em meio a muitas obras, Santiago Cero, seu romance de estreia, chama atenção como algo marcante, não entanto sem causar barulho por não querer se apresentar como algo que está à frente de seu tempo, mas sem dúvidas algo que não caiu nas mesmices de outros pares de seu tempo no Chile.

Explorando a quadra da vida em que se é jovem, Franz nos faz conhecer uma história cotidiana da juventude santiaguina durante a ditadura militar no Chile.

Narrada em segunda pessoa, revela-nos sentimentos de aferrolhamento e angústia presentes na vida dos chilenos, naquele momento, mas com ênfase naqueles que estavam dispostos a se arriscar um pouco mais, não que isso fosse muito.

O contexto de terror que habita o pano de fundo do enredo, aos poucos, parece elevar aquilo que há de mais sórdido nos seres humanos, assim como ao personagem principal que não recebe um nome em específico, evidenciando uma generalidade profunda, de algo que atinge a todos.

Alguns críticos literários habitualmente descrevem a realidade do enredo como algo alienado, tomando como referência, talvez, a realidade vívida, da experiência ditatorial que muitos enfrentaram em vida.

Entretanto, a realidade literária não é e não pode ser àquela que encaramos todos os dias, mas sim algo que revela um outro aspecto que nós, já deturpados devido os acontecimentos ao nosso redor, não conseguimos enxergar.

A realidade da trama ludibria para nos contar uma verdade de um dado momento histórico e nos alertar para as mazelas sociais.

Concordo com esta atmosfera alienada, desde que a palavra signifique encanto ou extasia, pois creio que dentro desta alienação ainda há sinal de “vida” perante toda a opressão imposta sobre a sociedade.

Embora, seja bem verdade, que esse encanto pode ser àquele que deturpa a interpretação dos seres que vivem sob um regime ditatorial e tornando-os anêmicos em relação a sua realidade.

Carlos Franz consegue magistralmente e, de forma bem direta, nos revelar a sensação de reclusão, cerrado, que sufoca a muitos e cansa a todos. Utilizando-se, para isso, de um espírito de consciência — se assim posso dizer — que enquanto nos apresenta a trama, esforça-se para tentar entender tudo aquilo que esta se passando.

Literatura: leia qualquer coisa, mas leia

Há duas semanas, terminamos nosso texto comentando sobre estarmos em uma sociedade como a nossa, em que cada vez menos crianças e adultos se interessam por leitura ou livros, seja qual for o tipo de literatura.

E então, levantamos algumas indagações como até que ponto um livro fácil sobre um romance adolescente, sagas efêmeras ou new adults podem ser desprezados? Na verdade não podem. Não podem por uma série de circunstância e fatores em que estamos imersos e que atualmente são indissociáveis para se debater o “empobrecimento da literatura“.

O mercado consumidor está aí, as barreiras foram quebradas com a “nova ordem mundial” e não há fronteiras — físicas ou virtuais –, nem mesmo em países com regimes ditatoriais, que não se consiga penetrar. O processo de adaptação das editoras e, consequentemente, de livros e escritores aos negócios não tem mais volta.

Ainda que uma parcela pequena de brasileiros realmente se dedique à leitura constante dos mais diversos gêneros, há clientes ávidos e dispostos a pagar.

Por mais que se possa criticar livros que não instiguem seus leitores a pensar as mazelas de sua realidade social e agir, é comprovado que a leitura, desde gibis até enciclopédias é essencial para a formação de pessoas pensantes e questionadoras.

Ainda que isso efetivamente não resulte em uma ação direta nos problemas de suas comunidades, porque mesmo que se questione, passar do pensamento à ação é uma escolha e ela nem sempre acontece.

Além disso, há uma série de benefícios comprovados cientificamente como o enriquecimento de linguagem, raciocínio e até estímulo à áreas menos ativas do cérebro quando a ato de ler se volta para textos que exijam mais concentração e esforço de compreensão.

Voltando aos nossos questionamentos: antes ler determinados livros que, por menos políticos que sejam, ainda contribuem de certa forma para construir mentes questionadoras, criativas e perspicazes?

E, ainda, que mentes são essas que estamos ou podemos construir com uma literatura que talvez não tenha o compromisso de questionar os problemas sociais de nosso tempo?

O primeiro problema, e atinge a todos, é que a velocidade da internet em nossas vidas nos entrega uma quantidade esmagadora de informações de forma muita rápida e muitas vezes, sem a pausa necessária para a reflexão, fica extremamente difícil alimentar nossos questionamentos e novos pensamentos a respeito de algum assunto.

Mas essa rapidez não está apenas no ambiente virtual, o próprio mercado editorial — com o perdão da palavra — vomita constantemente livros e mais livros, sem contar na exigência sobre os escritores de publicar em grande quantidade e no menor tempo possível para aproveitar as “ondas mercadológicas da literatura”.

Por isso quando dizemos que Gonzalo Contreras não é um escritor profissional, está implícito que ele faz livros quando acredita ser necessário fazê-los e não porque um contrato o obriga a entregar os debuxos de suas futuras obras de seis em seis meses.

A falta de tempo para reflexão é um grande problema na literatura contemporânea (quando falamos sobre reflexão, queremos dizer, a opinião do escritor sobre determinado assunto e qual a nossa posição em relação a isso), embora a literatura acadêmica pareça não sofrer desse mal e não incluo aqui romances que possam ser analisados por estudiosos, até porque, qual não pode ser estudado?

O fato é que restringir nossas leituras a textos mais fáceis e que aparentemente não exigem muito esforço de compreensão nos impede de ter acesso a uma ampla gama de nuances que só podem ser alcançadas com livros mais complexos.

Seja pelas técnicas utilizadas pelo literato, pela trama e sua conexão com a política e os problemas sociais, ou pela “pesquisa” que precisamos desenvolver para entender determinadas temáticas dentro da trama ou personagens — reais ou fictícios — que necessitamos conhecer para alcançar uma compreensão maior de um enredo, por exemplo.

A literatura light, sagas efêmeras ou new adults tem seu valor, mas estabelecem um objetivo diferente e uma construção diferente de leitor que livros mais “políticos”. E isso não é segredo para ninguém.

Jamais será negado o direito de entretenimento dos mais diversos gêneros literários e quaisquer outras ponderações e sentimentos que deles advenham.

Mas cabe ao leitor entender é que preciso mergulhar e não permanecer na superfície, dando um sentido maior aos livros do que apenas diversão, entendendo assim que para pensar os grandes debates sociais e políticos de nosso tempo, precisamos da literatura e não usá-la como rota de fuga dos problemas atuais.

Romances: questionamentos das mazelas sociais

O romance, gênero literário tão conhecido e amado por muitos leitores, para além de entreter, pode ser uma importante ferramenta de análise dos períodos e contextos em que vivemos, tanto por seus enredos, quanto pelos traços deixados por seus escritores ao longo da trama.

Através deles, milhares de escritores decidiram compartilhar suas visões, crenças, convicções e os fins que perseguiram durante toda a vida. Embora outros gêneros literários possuam suas riquezas, boa parte dos escritores optaram justamente pela ficção.

Essa preferência acontece, indubitavelmente, porque o escritor acredita em seu poder como um meio ou uma porta que lhe permite expressar seu engajamento e comprometimento com sua sociedade.

O romance ganha significativo lugar na vida das sociedades porque sem ele, o espírito crítico, motor da transformação histórica e o melhor defensor da liberdade com que contam os povos e nações, sofreria uma queda irremediável.

Toda boa literatura, e neste caso a ficção, é um questionamento radical do mundo em que vivemos. Embora nem sempre os escritores tenham a intenção, todo grande texto ficcional incentiva uma predisposição sediciosa, desobediente, indócil.

Principalmente escritores engajados e realistas, que de forma assídua, têm a disposição de se arriscar utilizando os poderes da ficção, agem transpondo, de diversas formas e intensidades, os acontecimentos que entendem relatar, sujeitando-os a essa reelaboração de natureza paradoxal, acreditando ser o único formato que pode fazê-los significar e comunicar plenamente.

O romance, assim como a auto-ficção, nitidamente aclara a percepção dos recursos literários e existenciais que constituem sua estrutura. É através da autoficção, do material de caráter biográfico, enriquecido pela vivencia em sociedade e alimentado da realidade existente, que se torna possível certificar o engajamento dos escritores.

Um romance configurado por uma estética realista em conjunto com uma responsabilidade que o escritor deve exercer perante aquilo que se escreve, produzindo assim, ao longo de seu enredo uma problemática, empregando uma reflexão e argumentos lúcidos, levará o leitor a se questionar.

Também colocará em prática a crítica, principalmente porque exposto a essa riqueza e diversidade que é o mundo fértil da ficção, dificilmente o leitor se contentará e permanecerá em sua zona de conforto, como um indivíduo resignado e fatalista, com esse mundo repleto de distorções e desigualdades em que vive. Através dos romances engajados, esse leitor estará em ininterrupta e imutável exigência de tornar sua sociedade em algo melhor.

Chile e literatura: A crítica aos escritores do pós-ditadura — Parte II

Na semana anterior começamos uma breve análise sobre a influência da ditadura na literatura do Chile e as críticas recebidas pelos escritores, em sua maioria, pertencentes ao grupo da nova narrativa chilena dos anos de 1990.

Sobre a divisão apresentada por Rodrigo Cánovas, no texto anterior, em relação às gerações de escritores de 1975–1980 e dos literatos de 1990, pode-se concluir que suas obras estavam cercadas pelo medo e repressão cultural imposta pela ditadura, resultando em apatia.

Essa apatia era transmitida em suas obras literárias através da instantaneidade das tramas, ou seja, seus enredos eram produzidos e focalizados em um instante, de forma rápida e repentina e logo se esvaneciam, sem uma problematização histórica mais profunda.

Não compartilho dessa visão, me parece mais uma crítica às opiniões públicas dos escritores, do que propriamente uma crítica ferrenha em relação à literatura. Obviamente considerando que, esses literatos escreveriam seus textos baseados naquilo em que acreditavam.

Parece representar também uma crítica à falta do aproveitamento de oportunidades para criar um sentimento nacional, logicamente coletivo. Talvez pensando nos benefícios que isso representasse para, por exemplo, reflexionar sobre os momentos vividos e quais os caminhos a população chilena traçaria dali para frente enquanto uma nação, soma de indivíduos.

Se formos considerar esse ponto como algo que deva carregar um sentimento de culpa, essa responsabilidade não pode ser apenas atribuída à literatura. Embora compreenda que, segundo essa perspectiva, as obras acadêmicas representaram um papel importante na criação do sentimento que falamos anteriormente.

Também não há falta de sentido histórico nos autores que destacamos, ou naqueles que pertencem à nova literatura chilena da década de 1990, pelo possível caráter imediatista de suas obras, baseados somente em experiências anteriores sem a capacidade de desenvolver um conhecimento objetivo, o que muitos chamam de solipsismo.

Sob a perspectiva da literatura engajada, alimentadas de grandes escritores como Sartre, Camus, Barthes, as obras do período que estamos comentando fomentam e incitam o debate na mente de seus leitores sobre o período da ditadura, compartilhando experiências individuais de seus escritores.

Essa é uma característica muito particular de textos realistas e tenha como pano de fundo uma temática social. Conversación en la Catedral de Vargas Llosa está baseado em suas experiências e aborda muito bem o cotidiano de indivíduos limenhos que convivem em meio à presença marcante da ditadura em todas as instâncias.

O quanto a crítica carrega um caráter político, não posso afirmar com clareza, mas negar a importância dessas obras para um reflexão maior sobre o passado, presente e qual futuro se deseja, seria um crime literário.

A instantaneidade é algo “previsto” nos cânones das obras engajadas, sem dúvida um ponto que gera muito debate, mas que não desvaloriza, de forma alguma, o comprometimento dessas obras com sua sociedade, buscando contribuir de alguma forma para o debate sobre os problemas do país.

Chile e literatura: A crítica aos escritores do pós-ditadura

Politicamente, a ditadura no Chile terminou quando Augusto Pinochet em 11 de março de 1990 entregou o comando do país ao presidente eleito Patrício Aylwin. No entanto, a presença do regime militar permanece até hoje na vida de muitos chilenos. Não é diferente com a literatura.

Um grande número de livros, romances e poemas abordaram o tema em seus enredos, muitas vezes como uma espécie de pano de fundo do contexto da trama, ou de forma explícita ao longo das histórias.

Oír su Voz de Arturo Fontaine Talavera, Siete días de la señora K de Ana María Del Rio, Morir en Berlín de Carlos Cerda, Mala Onda de Alberto Fuguet e Estrella distante de Roberto Bolaño são alguns exemplos, dentre milhares.

Essas obras apresentaram visões particulares de seus autores, através de vozes individuais ou uma polifonia para abordar contextos influenciados pela ditadura.

Entretanto, alguns acadêmicos chilenos afirmam que as abordagens desenvolvidas pela maioria dos escritores dos anos de 1990 não corresponderam a uma série de expectativas com a vinda do regime democrático e a necessidade de um aprofundamento da consciência história da nação.

Ficaram reclusas apenas no campo individual da memória e deixaram a perspectiva coletiva de lado. Permaneceram no âmbito privado, assim como parte da população chilena. A hibernação causada pelo o regime ditatorial não foi modificada em um momento político e cultural importante para os chilenos.

Supostamente, romances, crônicas, poemas, teriam se transformado apenas em micro histórias, gerando uma dissipação de temas. Em uma divisão apresentada por Rodrigo Cánovas os discursos públicos das gerações mais novas de escritores estariam limitados a duas perspectivas: uma ligada à cultura política entre 1975 e 1980, e outra, a partir da década de 1990, ligada a uma cultura mercadológica.

A primeira se caracteriza pela exclusão social e um sentimento contrário ao regime político oficial e cultura do período. Já a segunda se caracteriza por uma união social entre os escritores, mas sempre voltados para algo individualista e relevando o trabalho como literatos por lado profissional.

O embate é polêmico. Esse posicionamento não é compartilhado por todos, principalmente quando algumas análises dessas obras da década de 1990, sob a perspectiva da literatura engajada, revela a importância desses livros para a compreensão do Chile atual.

Justamente por isso, na próxima semana continuaremos abordando esse tema, com a conclusão do texto que se iniciou hoje, ressaltando uma contra opinião, nos utilizando das elucidações do engajamento literário.

O coiote comeu o Papa-Léguas? Alberto Fuguet

Além de grande escritor da era pós-ditadura no Chile, Alberto Fuguet é jornalista, roteirista e cineasta. Nascido em Santiago em 1964, embora tenha vivido quase 11 anos nos EUA, voltou ao Chile em 1975 em meio ao regime ditador de Pinochet. Em seu país natal, estudou Sociologia e Jornalismo pela Universidad de Chile e é, atualmente, professor da Universidad Alberto Hurtado.

No campo literário, Fuguet escreveu diversas ficções e contos, assim como produziu e dirigiu filmes para cinema e televisão que fizeram muito sucesso. Entretanto, seu romance com maior destaque é Mala Onda, que originalmente se chamava El Coyote se comió al Correcaminos, dentro do panorama geracional da nueva narrativa chilena de los noventa.

O livro foi publicado em 1991 e nos revela a história de um jovem chileno, vivendo em Santiago, seus temores, anseios e experiências na capital, enquanto a ditadura tomava conta de todo o Chile.

Em relação às técnicas literárias, seu romance é um Bildungsroman, palavra alemã para os romances de aprendizagem, ou seja, livros que trabalham a temática da passagem da infância para a vida adulta, denotando o desenvolvimento dos indivíduos sob os aspectos morais, físicos, sexuais, psicológicos, sociais e políticos, quase sempre atrelados uns aos outros.

O enredo da obra é permeado pelas expectativas e acontecimentos nos dias próximos ao plebiscito chileno em setembro de 1980, que decidiria sobre a permanência ou não da ditadura, na figura de Augusto Pinochet, por mais oito anos.

O protagonista, Matías Vicuña, que também narra a sua própria história, é um adolescente chileno de 17 anos filhos de pais acomodados com a situação do país e tentam aproveitar-se dela para obter benefícios.

A narrativa nos traz a vida de Vicuña repleta de muitas festas, rock, drogas, sexo que talvez possamos relacionar com as pressões que a sociedade exerce sobre os indivíduos, assim como a apatia de viver em um ambiente ditador que prega uma falsa moralidade e esconde as mazelas do regime.

Enquanto escritor, Alberto Fuguet se demarca como um realista, abordando temáticas urbanas e cotidianas, fazendo oposição ao realismo mágico, muito comum aos livros latino-americanos, principalmente depois da segunda metade do século XX, embora tenhamos várias correntes contrárias.

No entanto, é importante salientar, que o realismo do escritor não pode ser confundido com um realismo social e político. Embora suas obras possam ser analisadas sob essa perspectiva, quando dizemos realismo nos referimos à linguagem e acontecimentos que refletem o que de fato sucedia nas ruas, na confrontação diária entre os indivíduos e seu espaço.

A cultura pop norte-americana, que influenciou a vida do literato, também se faz muito presente em seus livros e filmes. O bom e velho rock ‘and’ roll, além de referências cinematográficas americanas tem o seu lugar. O que, no entanto, gerou uma série de críticas por conta desse estrangeirismo em seus trabalhos.

Mala onda é, sem dúvidas, o romance que revela a maior quantidade de elementos da literatura desenvolvida por Fuguet. O antigo nome do romance faz referência aos personagens do coiote e papa-léguas, em que o primeiro nunca alcança o segundo. Talvez essa seja a história do protagonista, tentar alcançar algo que, na verdade, nunca poderá atingir. Um quadro tão profundo que nem mesmo a queda da ditadura poderia mudar.

Morir en Berlín o Santiago?

Escritor do célebre livro Morir en Berlín e participante da Nueva Narrativa Chilena de 1990, embora tenha começado a publicar textos desde os anos de 1970, Carlos Cerda nasceu em Santiago, capital do Chile, no ano de 1942 e faleceu em outubro de 2001.

Graduou-se em Filosofia pela Universidad de Chile e anos depois, doutorou-se na Universidad Humboldt de Berlin, na Alemanha, para onde se exilou, fugindo do regime militar chileno, instituído com o golpe de 1973. Antes, porém, permaneceu alguns anos na Colômbia.

Sua estadia em terras alemãs, no lado oriental, foi muito frutífera para sua carreira como literato e também dramaturgo. Lá, criou personagens e situações intimamente ligadas ao país europeu e tornou-se um escritor reconhecido mundialmente.

Em 1993, após voltar ao Chile, Cerda escreveu o romance Morir en Berlín, o mais elogiado livro em toda sua longa carreira de ensaios, peças teatrais e ficções.

A experiência do exílio influenciou diretamente a trama da obra. Os personagens, em sua maioria, são chilenos que viviam na Alemanha e dividiam seus anseios, conflitos e histórias em uma terra de cotidianos estranhamentos, por suas diferenças culturais como a língua e comida, por exemplo.

Comunista, Cerda era contra o regime militar e, sob um outro ponto de vista, podemos entender seu romance como uma epígrafe póstuma de duplo sentido, relacionada tanto à queda da ditadura, quanto à queda do muro de Berlim.

A vasta gama de personagens pode ser compreendida também como pluralidade de vozes que representariam diferentes partes de um contexto, portanto partindo do individual para nos revelar algo maior e coletivo.

Diferentemente do que alguns analistas costumam afirmar, o romance não é uma visão de chilenos exilados na Europa e suas opiniões sobre o contexto mundial do período (ditadura, guerra fria, etc.), mas uma visão muito particular de um escritor que passou por essa experiência e conheceu pessoas nessa mesma situação, usando seus perfis e histórias reais para criar uma ficção pautada na realidade.

Para além de destacar personagens principais, a obra manifesta personagens coletivos, como La Oficina, agência presidida por don Carlos que auxiliava os exilados chilenos, servindo aos seus interesses, mas sem se esquecer das leis da Alemanha Oriental.

Deste modo, La Oficina parece muito mais controlar e burocratizar todo o processo de ambientação dos chilenos no país europeu, do que propriamente ajudar. Permissões de entrada e saída, permissão para divorciar-se, entre outras situações, transformaram o órgão em algo controlador e invasivo, agindo diretamente na vida do exilados.

Suas vidas pareciam não ter nenhuma consideração, estavam imersas em um jogo de interesses políticos e sociais. Eram vistas apenas como uma aglomeração de estrangeiros em um gueto, suas individualidades jamais tinham voz ativa.

As dolorosas experiências retratadas no texto, como a necessidade de abandonar a luta contra a ditadura em seu país de origem, a convivência difícil e, em muitos casos, a inadaptação ao novo país, são fatos de um processo que se aproximam do luto, gerando um sentimento de remorso nos expatriados.

Esses demônios — ou seja, esses fatos do passado — se exorcizam apenas quando subtraídos da memória e colocados no papel. Retratados às claras, em um livro, podem ser enfrentados e conjurados.

No fim, já não parece haver diferença entre ambos os lados divididos pelo oceano Atlântico. Se no Chile as liberdades estavam cerceadas, na Alemanha Oriental igualmente. As quedas do regime ditatorial e do muro de Berlim finalizaram contextos, mas internamente as memórias permaneceram. Morrer em Berlim ou em Santiago, na verdade, já não fazia diferença.