Como Bourdieu pode intensificar sua experiência com os livros

Para as pessoas que não estão acostumadas com o ambiente acadêmico ou com a leitura de livros ou artigos provenientes desse meio, ouvir o nome de Pierre Bourdieu pode causar calafrios. Mas até mesmo para os leitores de final de semana ou aqueles que consomem a literatura como um prazeroso entretenimento, Bourdieu tem algo simples a comunicar e que pode intensificar as experiências de leituras.

Conforme nos indica o sociólogo francês, que faleceu em 2002, os textos literários podem ser analisados, entre tantas outras formas, através do contexto social de seus escritores. O que estava acontecendo na época em que o literato estava criando sua obra, como por exemplo, as condições econômicas, política e sociais.

Se tivermos certo distanciamento da época em que o texto foi publicado, também é muito interessante verificar a recepção do livro, quais foram as opiniões da crítica literária e dos próprios leitores quando determinado romance foi lançado.

“(…) a análise científica das condições sociais da produção e da recepção da obra de arte, longe de a reduzir ou de a destituir, intensifica a experiência literária(…)”¹.

Embora Bourdieu esteja direcionando suas palavras aos pesquisadores e estudiosos, suas indicações são extremamente valiosas para nossas leituras cotidianas. Segundo ele, o resultado que vemos nos livros não brota de uma imaginação desconexa dos acontecimentos ao seu redor — por mais que os escritores tenham grande liberdade e utilizem-se da inventividade — ela se localiza no interior de um universo, que delineia as práticas e o pensamento dos escritores.

Muitas vezes a crítica que o autor pretende fazer, uma mensagem que intenta transmitir, entre outras ações, podem estar acobertadas. Relatos e testemunhos de um determinado período podem estar ali sem ser percebidos pelos leitores, tentando comunicar algo que talvez não fosse permitido ou que o próprio escritor quisesse obscurecer, buscando uma aproximação da realidade vivida até mesmo em textos de ficção científica que apresentem um contexto futurista.

Portanto, entender esse ambiente que cerca os literatos e a produção das obras, pode possibilitar uma percepção mais aprofundada do enredo e nos levar a questionar determinados caminhos tomados pela trama, engrandecendo nossa análise diante do livro e nos suscitando novas indagações sobre nossa vida em sociedade.

¹BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.14.

Quimeras literárias, realidades urdidas

Roda, pólvora, telescópio, prensa de Gutenberg, lâmpada, telefone, televisão, radar, satélite e internet. Todas são, reconhecidamente, grandes invenções da humanidade, transformaram a vida de nossas sociedades de maneira singular e, provavelmente, em uma lista com os grandes inventos da história, ocupariam lugar cativo para a maioria das pessoas.

Porém, maior das invenções, mas nem sempre recordada, é a Literatura. Épica, lírica ou dramática, como especificavam os filósofos da Grécia antiga, ficcionais ou realistas, a arte de compor e expor os escritos nos faz atingir veredas inimagináveis com diretrizes infinitas.

Através dela, simplesmente tudo é possível. Até mesmo o que ainda não existe, as criativas mentes inventivas dos literatos são capazes de gerar. E para aquilo que posto está, pode-se recriar ou recontar. Já o que escondido fica, deliberadamente ou não, as Letras podem, nem sempre de forma axiomática, desvelar.

A Literatura, ocasionalmente, ludibria, mas sempre há verdade por trás das mentiras. Contudo, não mente como a gente quando quer enganar alguém. Ela invenciona, enreda, trama. Nela, “mendaci ne verum quidem dicenti creditur” não tem vez porque até mesmo o mentiroso revela o oculto com veracidade.

É caso dos romances desenvolvidos na América Latina principalmente nas décadas marcadas pela rigidez das ditaduras militares. Nesse período, a ideia de que a função mais importante da literatura, ainda que contasse com elementos de ficção, era documentar e eternizar a verdadeira vida foi consolidada.

Revelar a sociedade ocultada e dissimulada pelos governos e as elites políticas era algo primordial. Oferecia-se uma oportunidade de cavar até as entranhas desses regimes e apresentá-las de modo matizado, na tentativa de escapar às garras da censura e, ao mesmo tempo, despertar os cidadãos para a cruel verdade.

Como Vargas Llosa demonstra no livro de Claudio Magris: “uma sociedade impregnada de literatura é mais difícil de manipular desde o poder e de submeter e enganar, porque esse espírito de desassossego o qual desenvolvemos depois de enfrentarmos a uma grande obra literária, cria cidadãos críticos, independentes e mais livres do que aqueles que não vivem essa experiência”¹.

De todas as criações humanas, sem dúvida, a construção das realidades pela Literatura é uma engenhosidade extraordinária. As quimeras literárias, entendendo-as aqui como fantasias e ilusões criadas pelos literatos, ajudam-nos a compreender os caminhos e decisões que nossas sociedades desenvolvem.

Através dessas verdades fugidias conhecemos uma parte importante da totalidade de nossa realidade, escancarando erros e incertezas, mas acima de tudo, oportunizando a mudança e o aperfeiçoamento de nossos modos de viver e pensar.

¹ VARGAS LLOSA, Mario. Los vasos comunicantes: novela y sociedad. In: MAGRIS, Claudio; VARGAS LLOSA, Mario. La literatura es mi venganza. Barcelona: Seix Barral, 2011, p. 25–26.

Contreras, um escritor não profissional

Gonzalo Contreras é o típico escritor que decide suas próprias regras de escrita sem se importar completamente se o trabalho que iniciou será publicado, atrairá um grande público leitor ou venderá muito.

Nascido em Santiago, capital do Chile, no ano de 1958, Contreras se afirmou ao longo de sua carreira literária como um dos grandes escritores contemporâneos latino-americanos e, sem dúvidas, um nome essencial quando se fala nos escritores dos anos de 1990.

Seu primeiro livro publicado foi La danza ejecutada, cuentos, autoedición no ano de 1986 e constitui-se em uma compilação de contos e relatos. Em seguida, publicou o romance que o demarcaria como um escritor de talento, La ciudad anterior, vencedor do prêmio da Revista de Libros de El Mercúrio em 1991, publicado no mesmo ano.

No ano de 1995 publicou El nadador, vencedor do Premio del Consejo Nacional del Libro y la Lectura. Entretanto, atingiu o ápice da técnica e versatilidade com o romance El gran mal, publicado em 1998 e vencedor do mesmo prêmio que havia recebido anteriormente.

Conhecido por seu estilo direto, o chileno, talvez, se diferencie de alguns outros bons escritores de seu tempo por não se importar muito em representar grupos ou classes sociais em suas obras, prefere manter o foco nas características individuais de seus personagens e problematizá-las ao longo do enredo.

Isso não quer dizer que suas obras escapem aos contextos de escrita e aos contextos sociais abordados nas tramas dos romances e contos. Eles estão ali, diluídos, incitando o leitor a identificar algo maior, para além dos próprios traços apresentados.

Logicamente, a crítica literária costuma afirmar que boa parte de seus personagens são representantes da alta classe e homens bens sucedidos, mas Contreras emerge desse tipo de limitação imposta pelos críticos para mergulhar nas frustrações e embates emocionais, revelando uma desiludida realidade.

No fim, não importa muito as questões sobre grupos sociais, embora estejam ali, mas a individualidade de cada personagem que se somará ao enredo e à conjuntura do livro, que, por sua vez, pode ser analisada no contexto de nossa realidade.

Embora sempre seja incluído como um integrante do grupo geracional Nueva Narrativa Chilena de los noventa, Contreras nunca escondeu que sempre se portou como um escritor fora dessa “classificação”: “Eu não ando com nenhuma bandeira da Nueva Narrativa. Eu sempre fui uma república independente”, proferiu o escritor em uma entrevista ao jornal La Tercera em setembro de 2013. Ainda assim, jamais deixou de reconhecer a importância dos escritores desse grupo.

Com uma literatura insolente e sem rodeios, Contreras transmite uma finalidade clara: é preciso reflexionar mais, do que simplesmente entreter. Não por acaso, ao longo de sua carreira — ainda ativa — nunca se preocupou com os hiatos de suas publicações. Se não há algo importante a dizer e contribuir, é melhor que não seja dito!

“Se alguma vez nos anos noventa eu considerei a ideia de escritor profissional, essa ideia me repele cada dia mais. Esse escritor que apresenta um romance a cada dois anos, tendo algo a dizer ou não; um romance do qual você pode se arrepender, é algo que não quero nunca para mim.”

A crítica literária e o surgimento dos intelectuais literários na América Latina

Na América Latina o florescimento dos intelectuais da literatura aconteceu por volta da década de 1950. Isso porque a atividade literária e a intervenção intelectual pareciam estar interligadas. Na verdade, desde o final do século XIX até a metade do século XX, é possível afirmar que muitos dos que se entendiam como intelectuais eram originários da literatura, expressando-se através dos romances, ensaios, poesias, etc.

Sem dúvidas, segundo Gonzalo Aguilar, o termo “intelectual da literatura” designa àquele que exercia originalmente a atividade como crítico literário e que aos poucos se projetou como figura pública, aproveitando-se do seu reconhecimento literários e da sua capacidade para interpretar com um “método e um arsenal conceitual sofisticado” os textos e dar a eles uma significação política, cultural e social.

Com o passar dos anos, esses críticos literários e também literatos que não necessariamente exerciam atividade crítica interviram e opinaram em assuntos importantes para as suas sociedades, principalmente pelo fato, confirmado por escritores do boom latino-americano, dos governos ditatoriais na realidade latino-americana não censurarem com veemência os romances.

Possibilitando, portanto, que estes tratassem de temas “impensáveis” dentro do contexto militar e alertassem os cidadãos através das tramas.

Aguilar, afirma mais uma vez, que este tipo de intelectual é, na verdade, resultante de uma junção de fatores que surgiram no século XX, entre eles a consolidação e modernização das universidades enquanto criadoras de um saber humanístico; o crescimento do mercado dos bens simbólicos; um maior acesso à leitura; o surgimento de uma disciplina específica da crítica literária e, principalmente o protagonismo crescente que desempenharam as ficções narrativas na busca por uma definição da identidade latino-americana.

Atualmente muito se fala sobre uma crise da crítica literária, mas esse é um outro tema. Na verdade, importante é destacar que por tantos anos esses indivíduos — Borges, Ángel Rama, Alejo Carpentier, Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Ángel Rodríguez Rea, Miguel Oviedo, etc. — se preocuparam e contribuíram para suas respectivas sociedades enquanto formadores de opiniões.

Sem dúvidas, a crítica literária ocupou nas décadas de 1950 e 1960 uma singular posição de influência, possibilitando reflexões críticas, contribuindo para a formação de cidadãos responsáveis, através também, da literatura.

Sartre: quando a literatura não foi prioridade

Jean-Paul Sartre, grande escritor, crítico literário e intelectual francês do século XX, fortaleceu e elucidou as concepções sobre a literatura engajada, ressaltando a importância dos literatos em assumirem uma escrita comprometida com suas sociedades, participando ativamente dos mais diversos debates, na busca de soluções para os problemas de seus tempos, através de seus romances, poemas, artigos, etc.

Grandes escritores do nosso tempo, como Leon Tolstói, Jorge Semprún, Octavio Paz, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa, leram Sartre e nortearam seu desenvolvimento intelectual através de seus textos; não só ficções, mas temas como o socialismo, existencialismo, engajamento, etc.

Muito presente enquanto intelectual e chamado sempre a opinar nas grandes questões na França, Sartre gerou polêmica no ano de 1964 quando, ao menos aquela vez, abjurou a literatura. Em um texto publicado no jornal francês Le Monde, Sartre indicou que diante das crianças que morriam de fome, La nausée — romance de sucesso escrito por ele em 1938 — não tinha serventia alguma.

Por isso, aconselhou os escritores de países como os africanos que, de certa forma, renunciassem a escrever para se dedicarem a tarefas como ensinar e combater o analfabetismo, desenvolvendo suas populações para que então a literatura fosse possível um dia.

Vários escritores receberam com certa estranheza a mensagem de Sartre, alguns, como Vargas Llosa se sentiram traídos. Deveriam então deixar a literatura engajada, que tanto acreditaram de lado? Escrever então era inútil e “proibido” enquanto a situação social e econômica não fosse melhorada?

Dizia Vargas Llosa:

“A partir de qual coeficiente de proteínas per capita num pais era já ético escrever romances? Que índices deviam alcançar a renda nacional, a escolaridade, a mortalidade, a salubridade, para que não fosse imoral pintar um quadro, compor uma cantata ou fazer uma escultura? Que ocupações humanas resistem à comparação com as crianças mortas mais airosamente que os romances? A astrologia? A arquitetura? Vale mais o palácio de Versailles que uma criança morta? Quantas crianças mortas equivalem à teoria dos quanta?” (VARGAS LLOSA,1985, p.399–400)

Talvez Sartre tenha apenas tentando passar uma mensagem sobre a importância do combate às injustiças sociais, mas com as palavras erradas. É difícil definir tão claramente por que o escritor francês se expressou dessa forma. Um dia ruim?

Um pensamento hesitante, daqueles que temos quando pesamos se realmente aquilo que fazemos faz algum sentido. O existencialismo, tão caro a Sartre, na busca de uma experiência humana mais concreta? Ou realmente quis dizer que a literatura, mediante esse panorama, de nada vale?

Eis uma discussão sem fim. Não só para a literatura, mas para as diversas atividades que envolvem a vida humana. Possivelmente não é um debate de prioridades, mas de coexistência. Trabalhar para a construção de um mundo melhor em diversas frentes, sem deixar a literatura de lado, é claro.

Traduções literárias e seus problemas

Esse não é um tema relativamente novo. Discutir os benefícios e os malefícios das traduções literárias é um debate de longa data, mas sempre em voga. Afinal, com a globalização — entre outros fatores — a quantidade de livros estrangeiros traduzidos e a rapidez com que chegam ao mercado editorial são estrondosas.

O cerne da questão está no indivíduo que traduz e a interpretação dada por ele aos textos. Por exemplo, a grande dificuldade lembrada por estudiosos da Filosofia atuais é que muito do que se tem dos filósofos da antiguidade são traduções que passaram por um processo de interpretação.

Ou, em alguns casos, o escritor do período afirmou que determinada pessoa disse aquilo, sem existir a possibilidade material, para nós, de realmente saber se aquilo foi dito.

Acrescenta-se a isso que muitas traduções portuguesas são feitas de outras traduções em língua estrangeira, ou seja, uma espécie de processo de filtragem, uma leitura da releitura, uma tradução interpretativa de outra tradução interpretativa:

Um texto dos sumérios datado de 5.000 a.C., em escrita cuneiforme, que passou por processos de transcrição, depois por uma tradução árabe, depois por uma língua européia, por exemplo, o florentino que então, mais tarde, veio a compor o italiano e, por fim, o texto foi traduzido nesta última língua. Só então, algum tradutor português conseguiu implementar a tradução. O exemplo é fictício e um pouco desconexo, mas ajuda na compreensão.

Logicamente, as questões acima são mais de cunho acadêmico. Na literatura, nos dias de hoje — ou pelo menos desde a invenção da prensa de Gutenberg –, é perfeitamente possível que você tenha acesso ao texto ou livro original que alguém tenha traduzido. Se compreendermos a língua, fica mais fácil de avaliar uma tradução para o português, ou comparar, com a finalidade de tirar pequenas dúvidas.

Mas isso nem sempre é possível. Quantos são capazes de ler em chinês, russo? Ou então, alguns textos contêm palavras e termos intraduzíveis para o português; novos elementos elaborados, enfim, algo que faz sentido apenas para a língua do escritor e precisa ser readaptado para que possamos entender e o resultado nem sempre é satisfatório. Dessa forma, estaríamos confiando na tradução e interpretação.

Em romances ou textos simples, pequenas palavras que possam receber traduções equivocadas não alteram muito o entendimento ou a percepção do leitor em relação à trama.

No entanto, em livros com técnicas narrativas mais elaboradas e complicadas, erros podem mudar a compreensão do texto, ainda que parcialmente. Embora exista a possibilidade de que cada leitor tenha a sua interpretação, mesmo com tradução de boa qualidade.

Na verdade, nenhuma tradução consegue ser 100% fiel, principalmente com o uso de gírias. A realidade é que a “era das traduções” oferece uma vasta gama de opções de textos, possibilitando que leitores em todo mundo conheçam culturas, cotidianos e relações diferentes.

Sem a tradução ficaríamos limitados a ler apenas as poucas línguas que dominamos. Pesando na balança, muito melhor com ela do que sem ela, mas todo cuidado é pouco, principalmente se você for o tradutor.

Mudando o mundo com a literatura e psicologia reunidas

Ao longo dos últimos anos os escritos desta coluna sobre História e Literatura abordaram diversos aspectos sobre a importância dos textos literários para a humanidade. Como denúncia das ditaduras, fontes históricas de diversos períodos, formação de opinião, conscientização, entretenimento, debates intelectuais, etc.

Ainda hoje, é possível encontrar estudiosos e intelectuais que garantam que a Literatura não tem grande contribuição, principalmente como resultante política e coletiva, porque dificilmente um romance irá incitar seus leitores, por exemplo, a irem até as ruas para protestar, ou seja, não enxergam um efeito prático, ainda que o romance tenha um caráter político ou realista-social.

Outros escritores ressaltam que a literatura age no subconsciente dos leitores, levando-os a questionar os mais variados assuntos decisivos para a sua vida, “acordando-o” para a realidade, alertando que algo está errado em sua sociedade. Agindo, portanto, de forma individual.

Não resta dúvida de que esses posicionamentos são muito relevantes em um debate primordial como o da contribuição da literatura para nossas vidas, mas algo que intelectual nenhum questiona é, na realidade palpável ou não, a importância da literatura enquanto peça-chave para a educação e a construção de um mundo melhor.

Mas ela não mudará o mundo por si só. É preciso leitores, pessoas entusiasmadas com a leitura, que não se contentam com a passividade da sociedade com coisas pré-estabelecidas e que se tornaram verdades concretas porque nunca foram questionadas. Pessoas capazes de entender as mensagens transmitidas aos longos dos séculos. Passa-las à frente, pensar, reformular, transformar em ações.

No entanto, o ponto crucial para a existência de leitores é a construção destes. É preciso começar desde a base da formação intelectual e social dos indivíduos. E esse papel cabe aos pais e aos educadores das pré-escolas, do ensino fundamental.

O prazer pela leitura será desenvolvido, portanto, na aprendizagem da criança, mediada pelo adulto, conforme indica Lev Vygotsky com o conceito de ZDP (Zona de Desenvolvimento Proximal), quando a criança ainda não é capaz de realizar uma atividade plenamente, mas com o suporte do adulto, é capaz de aprender aos poucos até desenvolvê-la em definitivo. Começando pela leitura e exposição dos livros para os pequeninos.

É comprovado, segundo estudos da Drª. Bridget K. Hamre, da Universidade da Virgínia que, mais do que a habilidade e a formação dos professores na pré-escola, o fator mais importante é a interação dos educadores com as crianças, contribuindo imensamente no processo de ensino.

E é nessa interação que os livros precisam estar, desde pequenos, o simples contato com o papel, com o cheiro do livro já contribui para desenvolver uma vontade de praticar a leitura. E assim sucessivamente, respeitando as etapas do desenvolvimento cognitivo da criança, estabelecidas por Jean Piaget, para que se possam desenvolver atividades desde o manuseio do livro, as primeiras palavras, até leituras mais acuradas.

Esse processo de amadurecimento do prazer pela leitura e consequentemente pela literatura, deve ser permeado pela afetividade, mas não estou falando aqui somente de amor e carinho, mas sim de estímulos positivos que geram uma reação nas crianças, como gera em qualquer ser humano.

Levando em consideração a teoria do desenvolvimento de Henri Wallon, em que a afetividade e inteligência se alternam e se progridem.

Durante o processo de alfabetização e posteriormente, com a leitura e interpretação de textos, as crianças encontrarão percalços, errarão muito e precisam receber afeto nesse processo para que a literatura, mais à frente, não se torne algo indesejado e árduo, encarada apenas como uma obrigação escolar, impossibilitando que a literatura possa exercer um papel transformador na vida do indivíduo e do mundo.

Indubitavelmente, são as crianças que, instigadas pelos adultos, se tornarão as questionadoras do futuro, impulsionadas pela literatura, acadêmica ou não. Que tentarão construir um mundo melhor, nos mais diversos âmbitos (político, culturais, sociais, etc.) e permitirão, assim, que a literatura possa agir sobre elas.

Romances para entender a realidade, Vargas Llosa

Como Vargas Llosa costumeiramente enfatiza, os entendidos de realidade não são os acadêmicos, nem os jornalistas, que elaboram textos e pesquisas sobre a realidade de nossas sociedades. Quem, na verdade, entende de nossa realidade são os sonhadores, assim nomeava os literatos.

Quando os romances realmente são efetivos e se constituem verdadeiras formas para alimentar a insatisfação dos seres humanos, nos subjugam e nos extraem de nossas vidas, repletas de caos e confusão, fazendo-nos viver a experiência mágica da leitura de uma ficção como uma realidade.

Não por acaso, muitos pesquisadores — historiadores, sociólogos, etc. — dedicam-se, nas últimas décadas, a estudar romances e escritores para trabalhar com temas que buscam compreender determinada época ou acontecimento em diversos países.

Logicamente, os romances realistas possibilitam um trabalho mais aprofundado, pois lidam em seus enredos com questões que dominam os debates em nossas sociedades, ou como pano de fundo ou delatadas em suas superfícies. Além disso, possibilitam compreender a visão dos literatos, expressa nas entrelinhas dos textos.

Segundo o escritor peruano, através da experiência de contato com um romance realista, voltamos ao mundo com uma sensibilidade muito aguçada, penetrante, para compreender de forma mais ampla tudo aquilo que nos rodeia, para enxergar mais claramente as imposições e hierarquias entre o que é importante e o que de fato não é relevante, mantendo-nos sempre com uma atitude crítica.

Mesmo que o modos operandi da escrita do romance apresente um leque de opções, constantemente é possível ver nas intervenções atuais do escritor a vontade de avistar novos literatos que se preocupem com o mundo em que vivem, cooperando para que o campo literário venha a se enriquecer e possa contribuir para a sociedade, de uma forma ou de outra, atuando de fato através dos textos.

Dentro deste quadro, para que a literatura possa efetivamente contribuir para analisar a realidade, Vargas Llosa enxerga a necessidade de que os literatos continuem se engajando, refletindo e questionando, à luz dos mais diversos pontos de vistas políticos, norteados sempre pelo pensamento do que é escrever e, de modo impreterível, o porquê de se escrever e a importância da função de escritor; superando a barreira individual, de apenas cumprir um desejo pessoal.

Dreyfus, Émile Zola e a literatura engajada

A noção de literatura engajada abarca duas interpretações. A primeira, centrada em Jean-Paul Sartre, floresceu no contexto de pós-guerra e tinha essa literatura engajada como algo historicamente situado. Essa concepção envolveria uma atenção especial com questionamento políticos e sociais, com ideais demarcados pela Revolução Russa de 1917.

A segunda interpretação, com Andre Malraux e Albert Camus como principais figuras, entendiam a literatura como mais ampla e flexível, com questionamento mais humanos e sobre a organização das cidades, defensora de valores como a justiça e liberdade, sem agarrar-se especificamente à Revolução de 1917.

O engajamento literário se tornou visível mais precisamente no século XX, mas seu ponto de partida foi o famoso caso Dreyfus. Foi nesse episódio em que o debate entre os escritores ganhou notoriedade. Esse caso demarca o surgimento da noção de “intelectual” na França. Pois possibilitou um duplo cenário: a submersão dos intelectuais e a literatura engajada com práticas que começavam a se definir.

Explicando o famoso caso: em 1898, houve a publicação do texto do famoso literato Émile Zola, J’accuse, denunciando os erros e abusos no processo de 1894, sofrido pelo oficial de artilharia do exército francês, Alfred Dreyfus, acusado de traição por espionar em favor da Alemanha.

Zola obteve apoio de outros escritores, contribuindo para que anos depois o processo fosse revisado. Essa intervenção aconteceu no momento em que Zola detinha grande reputação por seus romances e poemas, utilizando-se dela para intervir. Dreyfus foi considerado inocente. As acusações contra ele foram baseadas em documentos falsos por sua origem judaica, demonstrando um claro xenofobismo que tomava conta de muitos países na Europa.

Mas é preciso entender o caso Dreyfus, como um acontecimento que reconfigurou o papel do intelectual e não que o tenha criado, mas suscitou o surgimento de uma literatura engajada.

Dessa forma, podemos entender que o texto de um literato converteu-se em uma intervenção em sua sociedade, em um debate importantíssimo para o seu contexto. Essa “intercessão” foi discutida por seus pares — apoiadores ou não — pela sociedade civil, pelo governo francês, etc.

Assim, suas palavras foram levadas em consideração, abrindo precedentes para que outros escritores — desde que alcançassem reputação suficiente para intervir — pudessem participar das grandes questões de suas nações, continentes ou do planeta.

Vargas Llosa e sua distorção convulsiva da realidade

Os romances marcam parte importante da trajetória do escritor peruano Mario Vargas Llosa. Através dos enredos destas ficções o literato atuava na sociedade peruana, manifestando suas concepções sobre os grandes problemas de sua nação.

Pensando sobre o processo de escrita desses romances, após longos estudos para minha pesquisa de mestrado, conclui que é possível nomeá-lo com a terminologia “distorção convulsiva da realidade” da qual Vargas Llosa fala.

A “distorção” está relacionada com a ficção, pois a “mentira” aparece, mas sempre baseada na vivência do peruano, muito próximo da realidade, tornando-se, então, uma manifestação da vida.

Já a palavra “convulsiva” é usada porque se torna uma espécie de apocalipse, uma violenta agitação dentro de um conjunto de elementos reais (àqueles que podemos encontrar em nosso cotidiano), mas de forma que os enriqueça, ainda que venha a deformá-los. Por exemplo, contanto uma história fictícia para chamar a atenção dos leitores sobre algum problema social.

Inseridas neste contexto de seu primeiro entendimento estão as obras Los Jefes (1959), La ciudad e los perros (1962), La Casa Verde (1965), Los Cachorros (1967) e Conversación en la Catedral (1969). São textos denominados por vários críticos literários de “novela total”.

Isto porque apresentam panoramas de momentos conturbados e crises da realidade de seu país. Assim, as tramas deveriam tentar açambarcar praticamente todos os elementos da realidade, representando-os da forma mais total possível, diferentemente da sua visão a partir de 1970.

Embora possamos demarcar duas concepções, o escritor manteve ao longo de sua carreira a postura de engajamento. A tese central permaneceu a mesma, isto é, seus romances deveriam contribuir de alguma forma para alertar seus leitores sobre os problemas da realidade.

Ou seja, suas obras continuaram como um espaço para se engajar e exercer a intelectualidade que teria mudanças em relação ao seu fazer, mas que continuaria revelando o comprometimento e a responsabilidade do literato com seu tempo.